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Sexta-Feira,27 de Dezembro

Saudades do trem baiano - por Adilson Cardoso

Jornal O Norte
Publicado em 04/09/2007 às 20:54.Atualizado em 15/11/2021 às 08:15.

Adilson Cardoso *


 


Quatro de setembro. Exatamente há onze anos o cheiro da roça deixou de cruzar Montes Claros sobre os trilhos. Acabou-se o Trem Baiano! O trem que nos levava para a casa de Dindinha, lá na Parada de Nascimento, bem pertinho de Pai Pedro.



Cada vez que recordamos a alegria das viagens também nos vem à tona a crueldade do sociólogo, poliglota e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Que, em nome dos macro-interesses, da corrosiva praga estadunidense, exterminou os sonhos de incontáveis comunidades, que viviam dos produtos que vendiam no trem ou por intermédio dele. Destruindo assim uma relação visceral de 90 anos entre o povo e o trem, este que se tornou tão familiar que virou parte do nosso dialeto, podendo significar tudo, ao mesmo também não significando nada. 



A linda mulher que desfila suas curvas exibindo sua sensualidade é um trem bão. Quem exagerou nas suas peripécias fez um trem que não presta. O trem é sujeito, é figura de linguagem, também é metáfora. Muito mais que tudo isto, o trem é saudade. As janelas abertas para o olhar além do infinito provocavam a sensação de metamorfose a quem se atrevesse a mergulhar naquele instante. Tornava-se alado e fugia em busca daquela montanha bem depois daquela pequena casinha. Na velocidade do trem era preciso conter a felicidade, para não cantar como os pássaros que nos saudavam voando rente aos vagões.



Canaci, Uratinga, Capitão Enéas ou Burarama, Orion, Quem-Quem, Janaúba, Tocandira, Pai Pedro, Catuti, Monte Azul, Espinosa. Era este o roteiro das paradas oficiais quando o trem descia desencabeçado ali para baixo... (dizia meu avô). Mas no meio do mato também morava gente, e essa gente só tinha o trem para socorrer suas necessidades, como: comercializar sua produção, comprar um remédio na cidade ou fazer a feira do mês. Denunciavam esta afirmativa os sacos às costas e as caixas que subiam para desembarcar nesses ermos.



Eu descia na Parada de Nascimento com mãe, Guinha e Nenzinho, mas antes mãe era obrigada a comprar, em Tocandira, os deliciosos biscoitos espremidos. Quando descíamos no destino, ouvíamos as despedidas das amizades fugazes feitas durante a viagem, pulávamos da plataforma e agora era seguir, pisar o chão arenoso e ver a tarde cair por sobre as matas que hoje o progresso destruiu. 



Na curva da venda de Justo ouvíamos o apito do trem lá pras bandas de Pai Pedro, peões deixando sua labuta, negros feito o carvão com que lidavam dentro dos fornos. Cumprimentavam-nos e seguiam seus destinos, com cabaças e marmitas às costas, amarradas ao cabo da enxada. Não era raro vermos a travessia de codornas e nhambus que, em passos ligeiros, conduziam seus filhotes em busca do ninho.



Na chegada era sempre a grande festa, abraços calorosos de Dindinha e os rosnados ciumentos do velho Duque, o estimado cão que olhava o terreiro. Era assim em todas as férias, a mesma alegria, até que Dindinha resolveu nos deixar e ir além daquele infinito que a perspectiva nos dá. Mas, antes de morrer, Dindinha ainda andou de trem, nos trouxe queijo feito por ela e pinhas lá do terreiro que, no calor da segunda classe, dissolveram-se algumas, mas estavam deliciosas!



* Aprendiz de escritor

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