*Ana Raquel Copetti

De alguma forma, as chamas congelaram o tempo na Rua dos Andradas. Dia e noite e a tristeza se renova, multiplica, ganha força. Mas o tempo não passa.

Estou trabalhando há 24 horas. Não ouvi os gritos de dor dos pais que descobriam seus filhos entre os mortos em janeiro passado. Mas as ultimas 24 horas me ensinaram a ler todas as dores de saudade no olhar de quem perdeu cada um desses 242 jovens.

Santa Maria não cicatriza. O choro não cessa. O sangue escorre pela calçada em meio a velas, anjos, fotografias, mensagens, pensamentos, protestos. O sangue está nas silhuetas deitadas no meio da rua.

Vivi horas de angústia e intimidação. Eu não sabia o tamanho da realidade dessas vidas perdidas.

Mães desconhecidas procuram nos nossos olhos a juventude dos filhos. Eu cedo minha juventude inteira para que elas se sintam mais leves. Não adianta. Eu sou analgésico para dor crônica. Elas querem os filhos de volta. Elas querem o sorriso refeito. Querem o melhor e o pior do filho que foi roubado. Querem respirar ar limpo. Querem que as sirenes soem para anunciar bandidos presos. Querem que o sino convide para um canto de domingo.

As mães da Kiss querem outra vida, um sonho novo, o impossível. E se não podem ter nada disso, pedem apenas Justiça. A ordem certa das coisas: para todo crime, uma sentença. Um culpado. Grades cerradas.

Mas não há justiça. Nadinha dela. Há mais e mais manchetes que noticio diariamente sem acreditar.

Eu não consegui chorar. Minha indignação travou as lágrimas. Meu grito está entre os tantos que formam a multidão. Quero justiça também.

24 horas sem parar de pensar na vida. Bora trabalhar que há muito o que ser dito.