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Sexta-Feira,7 de Fevereiro

Refletindo ao alucinado som de tuba

Jornal O Norte
Publicado em 05/05/2010 às 10:30.Atualizado em 15/11/2021 às 06:28.

Fiquei muito comovido ao saber da história, que é comum para os negros desta terra e de outras, contada pelas hábeis linhas do criador Frei Beto. Incontestável veracidade de um mundo sombrio, que envolve aquelas pessoas que são obrigadas a cair na marginalidade, por força da disparidade social que aumenta a cada segundo.



A reflexão que se faz deste enredo é asfixiante, por não sabermos até que ponto chegará esta dominação pelo material, segregando pessoas e impondo a sarjeta como se o universo estivesse nascido fatiado com dantescas capitanias hereditárias. Um usucapião que, de fato, deveria valer no caso daquela família, que por gerações ocupou aquele singelo naco de terra, que abrigava um barraco no meio das atrocidades da pobreza, construído com restos de tábuas encontradas pelas vias de acesso aos progressos das metrópoles, telhados mesclados de papelões e chapas de alumínio, com buracos generosos para o bel prazer de observarem as estrelas, deitados em desconfortáveis camas de jornais e trapos dos monturos cheirando a baratas.



De repente, uma tenebrosa surpresa nem tem tempo de bater à porta, pois as máquinas  transformam em saudosas lembranças o que foi um dia o lar. Pai, mãe e filhos separados pela lei de um mundo que não se sabe quem criou, mas que vale mais que a Carta Magna. O tocador de tuba se perde na selva de pedras, o honesto que se transforma em meliante aos olhos daquela lei, e ninguém sabe onde está. Disseram que foi preso por desacatar as autoridades, que não queriam que ele pedisse pelo amor de Deus para não demolirem sua casa, pois era a única coisa que um negro catador de entulhos podia conseguir, para não deixar os filhos ao relento.



Uma dolorosa alusão aos animais que são trazidos para as prisões domiciliares, por sórdidos e gananciosos vendedores da felicidade, sem preocuparem-se com o amor que independente da criatura é o que guia o sentido, faz-se quase involuntariamente.



A realidade que começa a ser vivida por Nemo, que é filho da união entre os paupérrimos genitores, paralisa a sequência do pensar e deixa um grito mórbido entalado no ego. O medo da solidão e a dor imensurável do preconceito, que na mais tenra inocência talvez nem perceba por enquanto. Contextualizando o que ora disserto, o delegado Mesquita, em entrevista falando sobre a criminalidade crescente em Montes Claros, disse que isto se tratava de uma falha social, já que os assassinatos são ligados às disputas do tráfico de drogas.



Mas, voltemos ao alucinado som de tuba, este que a crua odisseia dos renegados faz zoar nos ouvidos dos leitores que incorporam a desgraça  sentindo o amargor da desigualdade nos lábios. A saga dos predadores provocados pela carência. Ou mata ou morre! Então, matar é o que resta, já que todos os dias se morre um pedacinho. As esperanças vão sendo alimentadas por pequenas ilusões criadas ao cheirar uma cola, ao fumar um baseado ou tomar uma dose de cachaça. Neste momento de efeitos salutares, mudam de posição e começam a mandar na sociedade que os expreme nas paredes da rua.



E alguém diz que deve se criar a pena de morte, sem pensar no que causou a delinquência deste que perambula com a mente encharcada de entorpecente, que também tem necessidades de alimento e carinho. 



O livro mostra com muito zelo a questão solidária entre as figuras que sobrevivem nestes incômodos espaços, um senso de protecionismo com o outro que é invejável quando pensamos nesta detratora elite que nos cerca, o amor platônico de Nemo por Alice nos envolve em poucas páginas e provoca o leitor a tomar partido nesta novela, na ilusão de que a rica e solidária filha do senador viva o romance com o negrinho sem teto despejado da favela.



Mas, enquanto ele chora a morte do amigo Panqueca e perde a amiga que vai fazer programas na Coréia, sua paixão sufocada vai passar dois meses na Disneylândia para esquecer a morte o pai corrupto.



Penso que temos as armas nas mãos, estas capazes de transformar o documentário sangrento que nos amedronta. Mas, primeiro, precisamos nos desnudar da capa super poderosa do preconceito.

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