Quem vem lá? - a saga dos tropeiros

Jornal O Norte
13/08/2005 às 00:21.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:49




Clídio de Moura Lima *

 

A noite era sem luz e as trevas invadiam toda campina. Noite própria para o andar de bichos bizarros. Todos temiam aquela escuridão.




- Quem vem lá? - perguntaram os viandantes na erma trilha aberta na floresta densa, num caminho onde andavam em fila um atrás do outro. O medo se apoderou de todos ao ouvirem um ensurdecedor ronco de coisa do outro mundo.




- Quem vem lá? - perguntaram novamente, após um silêncio de morte.




O pavor se estampou no semblante dos caixeiros-viajantes, mascates e tropeiros. Era noite de inverno e o vento sibilava vindo de todos os lados. O frio gelava a alma. Um zumbido e mato quebrando-se. Era uma voz sem sentido e mato sendo quebrado. Podia se sentir a presença gélida e um bafo que embrulhava o estômago.




- Quem vem lá?




A pergunta agora era trêmula e silabada. Como se já se soubesse que a coisa não era deste mundo. Havia uma trilha, não faz muito tempo, onde somente por ela se passava em fila indiana. As mulas carregadas, cavalos levando seus cavaleiros no lombo. A lama dos barrancos descia encobrindo a trilha esburacada, encharcada e aqui e ali as mulas empacavam. Se pelo peso, pela carga que levavam, se pelo atoleiro onde entravam... Não sei! Por que as mulas hesitavam na caminhada e eriçavam as orelhas?




- Coisa do outro mundo, compadre! - exclamou o mais velho dos tropeiros.




E falou com a segurança de quem conhece bem aquelas paragens; com a confiança de quem já viu coisa do outro mundo; inspirando todo respeito pelo conhecimento que lhe trouxe a labuta de uma vida longa. Afinal de contas, são sempre os mais velhos que lições nos dão. A experiência do homem comum respeitada pela ausência de minguados bancos escolares.




Misticismo. Mula-sem-cabeça ou lobisomem. Alma penada. Um guará uivando, perdido da alcatéia ou com fome. Melhor não arriscar. E se for uma onça?  Daí o conflito entre a coragem e a inteligência. Ter mais inteligência que coragem nesses momentos é como caldo de galinha, não faz mal a ninguém. Mas o homem já se desesperava com tantos pensamentos: é isto ou é aquilo? Coisa nenhuma que macho não resolva.




O raciocínio segue alentado por uma premissa: nunca vi couro de lobisomem nem mula sem-cabeça. A noite densa, não se via um palmo diante do nariz... Pra que arriscar? O raciocínio deu lugar a uma premissa maior, a razão. É que sempre há a primeira vez. E se o bicho aparecer e não for deste mundo?  Mas, já pensou a fama de ter enfrentado a coisa, seja lá o que for? Um crucifixo na mão, réstia de alho no pescoço...

 






O cansaço tomava conta de todos. Noite fria e o suor descia por aqueles rostos ríspidos. Eram todos homens rústicos, destemidos e inteligentes. O ronco daquela coisa agora dava lugar a um ruído ameno, com uma sonoridade eletrônica ou tilintar sonoro de aço. E em toda sua forma côncava e convexa havia luzes intermitentes e multicores.




Os tropeiros ardiam de febre, deliravam e tinham dores de cabeça, estavam prestes a desmaiar. Perderam o rumo. A Estrada Real, por onde trilhavam, à margem do Rio das Velhas... surgiram já às margens do Rio Juramento, pelas bandas de Glaucilândia, pelas terras dos Brant Maia. Foram vistos em Orion, margeando o Rio Verde, nos arredores das fazendas dos Figueiredo Bessa. Diz-se até que estiveram pelos barrancos do Rio Jequitinhonha, pelo município de Águas Formosas, já nas terras do Juca Quaresma.




Verdadeiramente não é fictício que os tropeiros reapareceram mansa e tranqüilamente, sem nenhum cansaço ou lembrança maior de sua saga vertiginosa, nas trilhas da Chapada Diamantina – retomando seu rumo com seu destino a ser alcançado em pouco. Compra e venda de tecidos, gado e ouro.




Precisavam para labuta reunir a suas tropas mais homens que deixavam suas esposas, mulheres saudosas que entoavam em coro uma cantiga:




- ...vai passando o boiadeiro, montado em seu alazão, vai levantando poeira. Poeira vermelha, poeira do meu sertão/image/image.jpg?f=3x2&w=300&q=0.3"right">


* Advogado, professor da Unimontes, autor do livro

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