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Sábado,20 de Dezembro

Prisco, o antigo

Por Chico Mendonça

Jornal O Norte
Publicado em 13/08/2014 às 21:21.Atualizado em 15/11/2021 às 16:34.

*Chico Mendonça

Prisco é um homem antigo, a começar pelo nome. Pelo menos é assim que ele próprio se considera. Nas manhãs de domingo, antes de ler o jornal, gosta de sentar na poltrona da sala de sua casa e ouvir música clássica. De olhos fechados, sente na pele cada acorde de violino, o solo do piano, o som dos oboés e das clarinetas. Experimenta, invariavelmente, uma profunda sensação de paz e acolhimento. Tal que, naquele domingo, ele não se irritou quando a filha o interrompeu para mostrar um som diferente: o canto das baleias. Consentiu, fechou os olhos e, depois de breves minutos, percebeu que aquela música estranha lhe trazia a mesma sensação.

Prisco, o homem antigo, abriu depois o jornal e, com os poros da alma ainda bem abertos, leu sobre a guerra em Gaza, percorreu os olhos sobre a foto de uma mulher palestina em choro desesperado com o corpo de uma criança morta nos braços. Vetusta senhora, pensou, a História um dia há de contar a história daquela carnificina sob a ótica dos interesses em conflito, os do Hamas que quer varrer Israel do mapa e criar o Estado da Palestina e os de Israel que rejeita oficializar fronteiras com o vizinho e quer mantê-lo sob o jugo das armas eternamente. Ao selecionar os fatos para melhor descrever os motivos do conflito, a velha senhora há de espanar para o lixo os detalhes que não contribuem para esclarecer os fatos. Entre eles, estará a dor daquela mulher, bem como a cena, vista no YouTube, das mãos idosas de alguém que acaricia um tijolo na impossibilidade de tocar o rosto sem vida da criança sob os escombros.

O homem antigo, Prisco, lembrou-se daquela que foi chamada “mãe de todas as batalhas” – uma entre tantas – pelo Ayatollah Khomeiny, em agosto de 1982, quando um exército de mulheres, velhos e crianças avançou por um campo minado para abrir caminho para as tropas do Irã, convencidos todos eles de que estariam, em seguida, nos braços de Alá. História não pousou seus olhos sobre aquelas pessoas, não considerou a possibilidade de que a dor insuportável de tantas perdas estivesse na origem do gesto insano de imolar-se e aos seus filhos menores, ansiosas por reencontrar no paraíso aqueles de quem tinham sido violentamente separadas pela guerra – suas vidas, igual às casas, transformadas em emprestáveis escombros.

Com os olhos marejados, Prisco, o antigo, compreendeu que a narrativa fria dos interesses inconciliáveis legitima as guerras. Ninguém se incomoda e facilita os debates. Séculos de experiência nada fizeram para mudar isso. Judeus e palestinos radicais continuarão resistindo à única chance de paz – a coexistência dos dois Estados –, simplesmente porque só conseguem ver do outro lado o inimigo e do seu próprio a razão para vingar-se. Não se preocupam em esconder seu arsenal bélico numa escola infantil, não se coçam antes de disparar o míssil que destruirá as armas e matará as crianças que lá estudam. A estupidez das paixões os iguala da mesma forma que o sangue semita que corre nas veias de ambos.  

A maciez da manhã já era quase e apenas memória na mente de Prisco. Ele lembrou-se dos seus próprios conflitos no escritório, nos problemas familiares que se arrastavam há anos e concluiu que a vida é essa mesmo, imutável, que o mundo não tem remédio e a paz não passa de um sonho de gente ingênua. Sempre haverá líderes insanos, de olhos vidrados de paixão, a conduzir multidões para o martírio, alheias estas às razões macroeconômicas e políticas de seu insuportável sofrimento, alheios aqueles aos próprios traumas pessoais que lhes embotaram a percepção e os levaram a sacrificar tantas vidas com a displicência de um jogador de dados.  

Talvez, imaginou Prisco, o antigo, se ouvissem acordes de uma orquestra ou o canto das baleias pela manhã, o coração voltasse a lhes vibrar no peito.

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