Por causa de uma rosa - por Antônio Augusto Souto

Jornal O Norte
Publicado em 22/06/2007 às 15:30.Atualizado em 15/11/2021 às 08:07.

Antônio Augusto Souto



Faz muito tempo. Foi na época em que este aprendiz de cronista iniciava sua vida de professor, que durou quarenta anos, oito meses e sete dias.



Quando cheguei, vindo da segunda jornada de trabalho, encontrei, na casa de meus pais, minha dulcíssima madrinha de batismo, acompanhada do marido pernalta, meu tio-padrinho que eu adorava. Acabavam de chegar de Aparecida, aonde tinham ido, para pagar promessa cujo teor não me revelaram. Dormiriam em nossa casa e, na manhã seguinte, rumariam para a fazenda, no município de Bocaiuva.



Ela era dona de voz absolutamente linda: límpida e doce, sem os guturais e nasais que, na minha opinião, tanto desmerecem a fala de algumas mulheres.



Não, leitora bela, não me julgue machista ou exigente em excesso. Apenas entendo que timbre de voz de mulher tem que ser condizente com sua condição de mulher: harmoniosa e clara, suave e doce, sedutora e quase sussurrante. Voz imperativa e dotada de decibéis acima da normalidade é mais apropriada para feitor de turma de operários. Timbre de taquara rachada  casa muito bem com pessoas antipáticas, por natureza. Voz feminina tem que acariciar e envolver o nosso ego.



Minha madrinha estava radiante. Após o meu abraço saudoso, relatou (já o fizera antes da minha chegada, três ou quadro vezes  fiquei sabendo, depois) que, na basílica da santa que é padroeira do Brasil, quando chegou a sua vez de beijar a longa fita azul que pendia do nicho, rosa branca desprendeu-se e caiu justamente na sua mão espalmada.



Entendeu a coincidência como a bênção das bênçãos, uma espécie de  remissão ampla e irrestrita de todos os seus pecados.



Depois do banho e do lanche apressados, pedi licença e desculpa, que eu tinha que encarar a terceira jornada daquela quarta-feira de outubro.



Quando retornei, tarde da noite, todos dormiam. Procurei não fazer qualquer barulho e fui dormir, também. Deixei acesas as luzes do corredor, como era do costume da casa.



Não demorou muito e ouvi barulho no corredor. Abri a porta e topei com a madrinha, ajoelhada, mãos postas, rezando alto, muito além de suas possibilidades vocais. Agachei-me diante dela, que me olhava e não me via: aquele olhar estranho  e trágico trespassava-me o corpo e as paredes, para contemplar, com a candura dos ingênuos e dos santos, alguma coisa que somente ela era capaz de enxergar.



Minha querida madrinha enlouquecera.



A casa inteira despertou-se. Houve correria, telefonemas e internação hospitalar. À tardinha, foi levada para Belo Horizonte.



Depois de algum tempo, curou-se e voltou à lucidez. Retornou para sua casa e viveu mais oito anos. Fui visitá-la várias vezes. Mas ela nunca mais foi a mesma pessoa: fez-se triste, ficou mais crente e andava pelos cantos da casa, reticente.



Fui ao enterro dela, mas não pude fazer-me presente ao do meu padrinho, que morreu alguns meses depois de ficar viúvo.



Naquela época, leitor agnóstico, cheguei a pensar que o misticismo religioso deveria ser encarado com alguma reserva. Acreditei que a religiosidade excessiva havia causado grande malefício àquela pessoa tão frágil. Hoje, o que sinto é dúvida: não teria sido benefício?

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