Anelito de Oliveira
O principal tema da próxima campanha eleitoral precisa ser a violência urbana. Questão de dever. A violência deve ocupar o centro da cena em todas as cidades brasileiras, naturalmente, mas de modo particular em Montes Claros. Foram 79 crimes apenas no ano passado, um aumento de cerca de 30% em relação a 2006. O NORTE DE MINAS, de maneira exemplar, estampou todos os nomes das vítimas na sua edição do último dia 03 de janeiro. Não se poderia encontrar melhor maneira de desejar feliz ano novo aos políticos profissionais.
Certamente terão melhor desempenho nas urnas em outubro próximo aqueles candidatos que fizerem da violência “sua questão”. Vale, sobretudo, para candidatos a prefeito, de quem se espera – com o auxílio da lei eleitoral – apenas projeto, não coisas como cimento, dentaduras etc. A população – especialmente a já enorme parcela direta ou indiretamente violentada – continua a ter muitas causas, obviamente, mas a violência agora é a mais premente, a que grita mais alto por solução.
Fácil e difícil de ser enfrentada é, paradoxalmente, essa causa. Políticos oportunistas, interessados apenas em resultados rápidos e lucrativos, tendem a vê-la como questão simples de se resolver: basta colocar mais polícia nas ruas, mais camburões, mais motocicletas, mais presídios etc etc. Quanto mais, melhor, para causar impacto visual, para movimentar os “transparentes” processos licitatórios de cada dia.
Todavia, os políticos que ainda preservam alguma seriedade – ainda existem, por incrível que pareça –, os raros políticos sérios, sabem, ou intuem acertadamente, a complexidade da questão. Violência é efeito, repercussão, estouro. Quando duas balas atingem a cabeça de uma menina de 20 anos, Josiele de Souza Rodrigues (uma das relacionadas na lista de O NORTE), por exemplo, já é muito tarde para perguntar, enquadrar e condenar quem puxou o gatilho; é hora de interpelar toda a sociedade.
De fato, a história não tem feito nada mais que comprovar a falência dos métodos tradicionais de combate à violência. Mas a “classe política” – que realmente é classe no sentido improdutivo da expressão, exclusivista, conjunto de pessoas “diferentes” das outras – insiste em se ater a efeitos em vez de se concentrar nas causas, esquecida de que sua função é exatamente separar o joio do trigo, o que parece ser do que de fato é, e – num contexto de enganações – procurar ir até mais longe: separar o joio do joio e o trigo do trigo, coisas mutuamente parecidas.
Antes de mais nada, a partir de um viés decididamente ético – que é o único que deve ou deveria orientar as ações na vida pública: a ética enquanto preocupação radical com o outro, como diria o lituano Emmanuel Lévinas –, cabe perguntar pela razão das práticas violentas, o que leva o indivíduo a investir contra o seu semelhante com tanto ódio, humilhando-o e, no limite, eliminando-o. E é à luz mesmo desse tipo de pergunta que a razão entra em crise, despedaça-se e revela, sobretudo, sua precária coesão interna.
Não há uma razão, mas muitas razões a fundamentar a violência. Em comum, essas razões têm apenas o social, aquilo que se torna objeto de reflexão obrigatória a cada processo eleitoral. A maioria dos candidatos, como estamos cansados de saber, sequer sabe falar categoricamente sobre esse social, deixando transparecer, nas entrelinhas, que seu interesse é tão-somente pessoal, que a sociedade, para ela, resume-se a ela. Isso, todavia, não chega a comprometer a importância do processo, chega a ser mesmo interessante enquanto reflexo de uma sociedade cada vez mais complexa.
Há de merecer atenção especial no próximo processo eleitoral aquele discurso que não tomar a violência de maneira inocente, como algo produzido por determinados indivíduos apenas, em função de históricos pessoais. Atribuir a violência a alguns, dizer que é problema de violentadores e violentados, significa nada mais que uma redução estúpida do social, dar vazão ao entendimento que a elite econômica brasileira tem cultivado desde os tempos de Dom João VI: o social como espaço dos pobres.
Não há espaço de alguns, particulares, mas sim alguns, uma minoria, que se proclamam donos do espaço, numa ofensiva anti-social que, sem dúvida, incita a violência. Querem uma cidade só para eles, com ruas bem asfaltadas e iluminadas, com postos de saúde e de polícia, com praças bem cuidadas etc etc. Têm direito, claro, a essa presença de Estado, pagam impostos, como muitos gostam de alardear ecoando certo apresentador de televisão, mas outros, independente de pagarem ou não, também têm direito ao humanamente básico, pelo menos.
Presença e ausência de Estado numa mesma cidade, região ou país é, atualmente, um dado fundamental para se objetivar a forma do social, como o “sociu” se efetiva, o que é tarefa primordial do político. A violência nos informa, sobretudo, a respeito de um mal-estar nessa forma, estimula-nos a pensar num fundamento injusto presente ali, num conteúdo, paradoxalmente, deformado. Logo, enfrentar a violência, de maneira séria, implica enfrentar o social, em toda sua complexidade, não indivíduos ou grupos. Requer, especialmente em momento eleitoral, inteligência política.
* Anelito de Oliveira é doutor em Letras pela USP, professor do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Social da Unimontes, do Departamento de Comunicação e Letras da mesma Universidade e membro da equipe responsável pela organização do programa de mestrado em Direitos, Políticas sociais e cidadania das Faculdades Santo Agostinho e diretor executivo da multifuncional Inmensa, voltada para projetos na área de cultura, mídia e educação.
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