Paixão pelos dois, e sem possibilidade de escolha

Jornal O Norte
Publicado em 09/02/2010 às 10:37.Atualizado em 15/11/2021 às 06:20.

Mara Narciso


Médica e acadêmica do curso de Jornalismo da Funorte 


 


Quando menina via na sala da minha casa um quadro que retratava um céu diurno, uma casinha da palha, uma moita de capim e um barquinho amarrado num mourão, à beira de um pequeno lago. Não posso me lembrar quando essa pintura chegou, e nem o nome do pintor, por ser uma garatuja ilegível, mas soube que foi trazida de São Paulo. Eu gostava de olhar aquela paisagem para me sentir dentro dela. Há poucos anos ainda via essa tela na casa. Uma cena dessas fixa-se em nossa mente mais do que qualquer fotografia.



Depois de montar meu apartamento, decidi escolher um quadro para minha sala. Deveria ser uma imagem que eu gostaria de ver todos os dias por dezenas de anos. Assim, quando fui estudar em Belo Horizonte , e freqüentava a feira de artesanato da Praça da Liberdade, também chamada Feira Hippie, comecei a vasculhar o mostruário de telas de ponta a ponta. Mesmo depois que voltei à minha cidade, nas visitas a capital, continuava procurando. Gostava de diversas pinturas, e a minha predileção era por cenas de formas reais, levemente deformadas ou borradas, numa recriação da realidade, mas sem perder o contato com ela. Via, mirava, conversava com o artista, perguntava o preço, achava que valia, mas estava certa de que ainda não era aquela.



Também não desistia. Não era obsessão, mas jamais deixei de visitar galerias, observar e ir embora sem nada, pois ainda não tinha sido daquela vez. Nos centros de compra maiores há o setor de arte, e nele eu me perdia. Nas viagens, achava o local dos pintores e seus quadros, de todos os feitios e estilos, e eu firme, admirando, gostando muito, mas ainda sem sentir que era a tela esperada.



Inacreditáveis 21 anos se passaram. Percalços financeiros também pontuaram o adiamento da aquisição. Um dia, fui à inauguração de um hotel em Montes Claros. Em todas as áreas comuns havia um quadro nalgum ponto estratégico, com múltiplas telas de três artistas. Desde o hall fiquei de olho, embevecida, gostando da maioria delas. Quando cheguei ao restaurante menor e olhei para a parede do fundo, não acreditei. Foi um impacto visual tão grande que julgava ser impossível experimentar, diria mesmo ter sido uma experiência divina. Extasiada e sem fôlego, só pensei numa coisa: achei! É ela!



A tela de Konstantin Cristoff criada no sentido horizontal mede 1,5 por 0,8 m , retrata flores em vôo celestial, feito notas musicais, de cores vivas, tocadas pelo vento, num cenário festivo, vistas de baixo para cima, como uma criança vendo a paisagem. O céu é azul claro, onde os talos mal seguram as flores fujonas. Há ainda um pedaço de terra fazendo a base do cenário. O que senti ao contemplar tal obra de arte foi de satisfação plena, que poucos encontram em raras situações, ou jamais a conhecem.



Precisava ter o quadro na minha sala. Procurei o filho do pintor, Igor Cristoff, e o pedi que o retratasse in loco. De posse das fotografias, ele encomendou ao pai que recriasse o quadro, e ele assim o fez. As dimensões seriam semelhantes. Depois de uma semana fui chamada para ver o resultado. Era lindo, com cores ainda mais impactantes, intensas e felizes. A maior diferença era o céu, desta vez de um azul mais forte, e a terra era mais ampla, ocupando um terço do espaço, reduzindo-se assim uma fieira de flores no topo. A imagem também encantava, mas era outro quadro, não era o “meu quadro”. Tentei fazer a troca no hotel, mas não aceitaram. A alegação era de que o mais novo seria menos valioso que o anterior, pintado cerca de dois anos antes, se tanto. Até pagaria a diferença, mas essa alternativa foi descartada.



Não aceitei a explicação, muito menos as desculpas. Tratei de ficar completamente traumatizada por uma semana, numa espécie de luto pela impossibilidade de possuir aquilo que esperei mais de duas décadas para ter. Era preciso esperar uma vida inteira e mais um pouco, e de preferência deitada para não me cansar. Há coisas que não têm jeito. Nem uma mágica seria capaz de solucionar o caso.



Após o sétimo dia, tratei de me apaixonar pelo outro quadro, e construí uma relação de cumplicidade e admiração por ele. É uma pintura belíssima, que ocupa um lugar de honra na minha vida, mas é outra pintura, com outra personalidade, que me leva para um lugar que não o daquele dos meus sonhos. Assim, me tornei bígama: duplamente apaixonada, sem conseguir largar nenhum dos dois. São na verdade gêmeos bivitelinos. Preciso dos dois, e de vez em quando vejo o outro por fotografia. Depois de muitos anos fui vê-lo de perto. Foi dolorido, ou mais do que isso, sendo preciso coragem para vencer o trauma. Adiei o quanto pude, mas consegui ir.



Depois de onze anos, no dia de hoje, não sei de qual dos dois eu gosto mais. Não sou louca a ponto de fazer “a escolha de Sofia”!**

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