Os tapuias de tênis e jeans - por Eduardo Brasil

Jornal O Norte
Publicado em 02/07/2007 às 17:38.Atualizado em 15/11/2021 às 08:08.

Eduardo Brasil



No momento em que comemoramos nossos cento e cinqüenta anos de historia como cidadãos, relembremos um pouco os tapuias.



Não exatamente os tapuias que habitavam nossas regiões inóspitas dos idos do século XVIII - os índios bestiais com suas tangas, semblantes pintados de urucum, tacapes à mão, pés descalços, de rituais de antropofagia a abocanharem brancos invasores.



Relembremos os tapuios de 1979.



Isso. Vamos relembrar dos tapuios contemporâneos, do final dos anos setenta - com melenas ao vento, calças jeans desbotadas, sinal de paz e amor nas mãos, de tênis (Bamba) nos pés, camisetas (Hering), ruges e batons.



Corre o ano de 1979 e o cenário é a oca de Reginauro Silva. Sentados em círculo, no chão, em meio a livros (poderia ser de Augusto Boal, Nelson Rodrigues), discos (de Caetano, Gil,), jornais (Pasquim) e revistas podem ser vistos pouco mais de dez pessoas.



São entusiastas do teatro.



Estão reunidas, ali, na oca de Régis, para constituírem uma tribo coesa, que possa promover a ascensão de nossas artes cênicas reunindo os vários de seus elementos que se dispersavam – e divergiam inúteis pela taba, em trabalhos isolados.



O propósito: fumar o cachimbo da paz, criar um grupo de teatro que envolvesse todo mundo. Poucos escaparam.



Assim nasceu o Tapuia, grupo que revolucionaria o cenário teatral da cidade (e do Norte de Minas) a partir da sua primeira montagem - A formiga que queria ser cidade e virou princesa, de Reginauro Silva, que tive (junto com Raimundo Mendes) a honra de dirigir, trabalho que acabaria inaugurando o Centro de Cultura Hermes de Paula - e que nesses cento e cinqüenta anos de Montes Claros não poderia passar esquecido de algumas linhas, embora o fato mereça mais que uma mera resenha (ainda que fosse tão especial quanto à do Rê).



Concebida a tribo, partimos então para o grande sonho que era a construção de um teatro – na época existiam os donos de auditórios, aí incluídos até donos de salas de cinema, onde várias de nossas peças foram (forçosamente) encenadas.



Sabíamos que o prefeito Toninho Rabelo, naquele início de 1979 estava prestes a dar o pontapé para a construção do Centro Cultural e conseguimos uma audiência com saudoso chefe do executivo. Nossa intenção: pedir a ele mudanças no projeto prevendo a construção de um auditório. Sugerimos que o espaço fosse transformado em um pequeno teatro, com acomodação para pelo menos 250 pessoas.



Toninho nos ouviu, gostou da idéia, chamou seus engenheiros e mudou o projeto. Na verdade, ele gostou tanto que nos convidou para que inaugurássemos o teatro com uma peça que falasse de nosso povo, de nossa história. E foi o que fizemos em maio de 1979 com A formiga que queria ser cidade e virou princesa.



As obras do teatro do Centro Cultural foram testemunhadas por nós, do Grupo Tapuia. É que, depois de um período ensaiando no teatrinho do salão paroquial da Matriz, na Avenida Coronel Prates (demolido neste ano para a construção de um mega-empreendimento comercial), com as obras do teatro já avançadas, resolvemos realizar nossos laboratórios no palco ainda por ser concluído.



Foi uma experiência fantástica, já que construíamos uma peça de teatro onde os operários construíam um teatro. Experiência enriquecida com a interação que tivemos com uma equipe de cinema que filmava em Montes Claros o célebre Cabaré Mineiro, do qual participamos como figurantes.



A apresentação de A formiga foi um marco no teatro de Montes Claros. A peça ficou em cartaz vários meses, com casa lotada, num trabalho irreverente sobre nossa história e costumes, com uma linguagem moderna e sustentada numa fotografia inovadora, reunindo dezenas de atores que se alternavam em papeis dos mais curiosos, desde os nossos tapuias passando por Antônio Gonçalves Figueira, Dona Miloca (a primeira mulher a usar calças compridas na cidade), Dona Tiburtina, ao próprio Toninho Rabelo, numa paródia que encantou platéias que se estenderam pelo Norte de Minas.



Por isso e por outras façanhas que viriam a ser empreendidas pelos tapuias do século XX é que nesse início de século XXI devemos reverenciá-los. A eles e mais uma vez ao grande chefe, o cacique Toninho Rabelo. Quanto aos tapuios, a lembrança é mais que oportuna, até porque em outras ocasiões propícias a ela, como nas comemorações de aniversário do Centro de Cultura Hermes de Paula, eles nunca são lembrados.



Podemos dizer que hoje a cidade gostaria de ter aqueles jovens entusiastas de volta, a promoverem a cultura montes-clarense com inteligência, com desenvoltura, considerando que o teatro em Montes Claros, salvo as exceções que toda regra permite, não tem repetido façanhas como as que os tapuios assinaram. Alguns dos atuais atores da taba têm contribuído até mesmo para o retrocesso do segmento, fazendo da arte cênica uma picareta que de tanto bater nos seus verdadeiros valores leva o alicerce dos bons palcos teatrais construídos nos anos oitenta à ruína. A esses - eles também merecem ser lembrados neste sesquicentenário, bem temperados, os velhos tapuias – em especial aqueles antropofágicos do século XVIII.

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