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Sexta-Feira,27 de Dezembro

Os ribeirinhos e a transposição - por Domingos Diniz

Jornal O Norte
Publicado em 25/10/2007 às 18:27.Atualizado em 15/11/2021 às 08:21.

Domingos Diniz *



Muito se tem falado e escrito sobre a transposição das águas do São Francisco. Os técnicos, os entendidos têm abordado contrariamente o assunto sob os mais diversos aspectos. E o fazem aos olhos, com exemplos, com dados irrefutáveis, com uma clareza de dois e dois são quatro. Como não sou técnico nem autoridade no assunto, falo aqui como ribeirinho, como barranqueiro que sente na pele, nas vísceras, no coração, na alma a degradação do rio  e mais a idéia de se transporem as águas. Falo aos ouvidos, ao coração dos ribeirinhos e de quantos se interessem por este assunto. Conto a estória inusitada que está acontecendo em todas as beiradas do rio, da nascente à foz. A “revolução do cinto da castidade” em curso pelos espíritos das prostitutas, “putas”, “quengas”, “couros”, “cuias”, “de vida fácil”, “mulheres da vida” e tantos outros nomes populares que ganharam na carreira do rio.



Em protesto à transposição, todas as mulheres trancaram o cadeado do cinto da castidade. Fecharam as pernas. As do alto São Francisco jogaram as chaves nas furnas da Serra da Canastra. No lago, as de Três Marias. As de Pirapora e adjacências jogaram  no caixão, a parte mais profunda e perigosa da cachoeira, ou enterraram no meio da ilha “do inferno”. As de São Romão e São Francisco, nos contrafortes da Serra das Araras. As de Januária, Itacarambi, Missões, Manga e Morrinhos, foram ao Peruaçu e ali deixaram as chaves, bem no fundo. As de Malhada, Carinhanha, Lapa e Ibotirama, depositaram as chaves na cova da cobra de asas, na Gruta do Bom Jesus. As de Paratinga a Juazeiro/Petrolina foram até ao lago de Sobradinho, onde tibung, tibung, tibung foram as chaves caindo uma a uma. Já as de Jatobá e Paulo Afonso atiçaram as chaves na represa de Xingó. As do baixo São Francisco dançaram o toré e a ciranda e as chaves se perderam nas água onde o rio se confunde com o mar.



Está instalada a revolta, a sedição, o eto do “cinto da castidade”, das pernas fechadas, das mulheres que sempre foram marginalizadas, excluídas. Nota-se de imediato o efeito. Os homens todos estão indóceis, raivosos com o diabo da revolução do “cinto da castidade”. Um fenômeno interessante que se faz notado: os homens estão cada vez mais com os desejos sexuais aguçados e, ao mesmo tempo, se colocam contra a transposição das águas do rio. Até os velhos coronéis ameaçam pegar nas carabinas. O bispo da cidade da Barra fez um sermão contundente, à moda do “Pelo Bom-Sucesso das Armas de Portugal Contra as de Holanda”, em apoio à revolução do “cinto de castidade”.



O rio está parado. Neste instante os espíritos dos afogados sobem para as estrelas, as cobras perdem o veneno. Os espíritos de todos os remeiros e “vapozeiros” ganham força e as barcas e os vapores voltam a navegar. Atracados nos principais portos da carreira do rio, estão gritando, reverberando contra a idéia de se transporem as águas do rio. Têm, antes, de fazer o rio ser o rio que era no tempo da navegação, dizem vapores e barcas. Das proas das barcas as carrancas se tornaram gente e animal. De suas bocarras e olhos chispam labaredas de fogo.



Dramaticamente perguntaram as carrancas:



- Como transpor, se o cerrado, o pai das águas, está dizimado? Como? Se as águas nem mais matam a sede dos homens e outros animais viventes ribeirinhos! Como? Se as águas nem mais fertilizam as terras de vazante!



Pilão Arcado, Casa Nova e Santo Sé, cidades submersas pelas águas de Sobrandinho, emergiram, ressurgiram. As torres de suas igrejas, as cruzes de seus cemitérios, as cumeeiras de suas casas bradam bem alto, para todos ouvirem:



- Cuidado, homens do governo, sejam sensatos, não façam a transposição das águas do rio! As gerações novas vão pagar um preço muitíssimo caro e quem vai beber das águas, não serão os nossos pobres irmãos do semi-árido nordestino.



Nesse projeto da transposição há mais coisas estranhas do que as lendas e os mitos no São Francisco.



* Da Comissão Mineira de Folclore, da Aclecia e professor da UEMG – Escola Guignard

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