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Sábado,20 de Dezembro

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Por Patrícia Gomes

Jornal O Norte
Publicado em 01/08/2013 às 09:24.Atualizado em 15/11/2021 às 17:08.

Por Patrícia Gomes


Aos oitenta e três anos a gente não pode exigir muita coisa de ninguém, milha filha. Oi? Tenho sim! Eu tenho uma família muito amorosa, a minha irmã, os meus sobrinhos vêm sempre me ver. Eles queriam que eu morasse com eles, mas eu não quis atrapalhar, sabe?

Ninguém quer um velho por perto, a gente dá trabalho. É médico, remédio, dificuldade pra subir escada, pra vestir roupa. Uma sobrinha minha insistiu pra que eu me mudasse pra casa dela. Imagina! Eu morando com um casal jovem, com uma vida inteirinha pela frente.. Não... Fui eu que pedi pra vir morar aqui. Se é bom? Ah... É... Não é o que eu planejei pra minha vida, mas eles cuidam bem de mim.

Eu divido a casa com outras tantas senhoras. Oi? Se dá pra conversar? Ah, dá. Com algumas converso às vezes. Com outras consigo até dialogar. Rá! É engraçado, minha filha. Aquela ali chooooooora... E eu falo: fecha essa boca, menina! Já é feia de boca fechada, faz agora essa cara, fica mais feia ainda! hahahahahahaha Ela não me entende, por isso posso falar o que eu bem quiser.

Eu sou muito brincalhona, filha. Eu gosto de levar a vida com bom humor. Oi? Acho, acho importante, sim. Elas não estão com a cabeça boa, são velhinhas demais, algumas doentes, sabe? Tem hora que eu tento conversar, mas elas ficam num cantinho, com o olhar perdido e o pensamento sabe-se lá onde. Aquela lá do outro lado, aquela conversa bem, tem cabeça boa igual a mim, sabe? Com ela dá pra bater um papo animado, falar de lembranças, de história e até das coisas de hoje em dia. Mas, é tão raro. Tinha outra aí que era minha amiga também. Era lúcida e animada, mas morreu... É o destino, né minha filha? Não tem jeito.

Já falei que eles me tratam muito bem? O pessoal é muito cuidadoso, tem carinho pela gente. Aqui tem pessoas com histórias de vida de todo tipo. Mulheres que já sofreram violência, que foram abandonadas pela família, mulheres doentes. A doença mental é difícil. Oi? Alzheimer ou caduquice mesmo... Cada uma tem uma coisa. Tem aquelas que têm filhos maravilhosos que simplesmente não têm condições de cuidar delas, as que nunca tiveram filhos...

Oi? Não, não tive. Eu namorei quando era nova, mas nunca casei. Depois de velha, arrumei um amor, morei com ele durante dezesseis anos, mas não casei. Oi? Ah, eu sei. Diz que juntado com fé, casado é, é isso? Mas, não tive filhos. Ele morreu e eu fiquei sozinha de novo. Nem por isso sou solitária, minha filha. Tenho irmãs maravilhosas, já te contei? Outro dia, minha irmã e meu cunhado vieram me buscar pra ir ao médico. Fui a dois especialistas, por causa desta pinta aqui no meu ombro. Semana que vem volto lá para retirar a pinta. Oi? Não, não é nada. Quer dizer, o médico falou que não era nada. Mas, se for alguma coisa terrível, que mal há? Já te disse que tenho oitenta e três anos? Pois é... Nessa idade, nada mais é tão ruim ou tão bom.

A Kombi nova? Você quer saber o que eu acho, é isso? Ah! Uma maravilha! Roubaram a maior alegria desse povo aqui. A Kombi era o nosso passaporte para o mundo. Era ela que nos levava pra passear nas praças, museus, parques. A vida aqui é boa, mas tem tanta coisa interessante lá fora, não é? Agora que esses meninos fizeram a caridade de nos doar uma Kombi novinha, vamos voltar a voar, a sonhar, a imaginar que ainda há coisas boas a se fazer.

Sabe, me pediram para ler um agradecimento. Afinal, eu sou das poucas em condições de ler um texto sem vacilar. hahahahahahaha Oi? se vou chorar? Ah, minha filha, devo chorar. Eu me emociono com muita facilidade. E uma atitude como essa emociona qualquer ser de carne e osso... Mas, será um choro de alegria e de esperança de que, um dia, as pessoas parem de roubar Kombis de idosas indefesas e comecem a reunir os amigos a fim de descobrir o que podem fazer para ajudar quem já viveu tanto e não consegue mais seguir sozinho.

Oi? Também gostei muito de conversar com você. Fico feliz que alguém ainda ache importante o que eu tenho pra falar. Chegou a minha hora de ler o texto. Não, minha filha, não chora. Espia só, porque quem vai chorar agora sou eu. Muito obrigada pela companhia!

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