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Terça-Feira,24 de Junho

O verso e o invés - por Eduardo Lima

Jornal O Norte
Publicado em 08/03/2007 às 09:47.Atualizado em 15/11/2021 às 07:59.

Eduardo Lima



Escrever é desatar o nó. Escrever é libertar-se, vir a furo, purgar. A palavra é ar e água - e para os dela dependentes o recobro ou a droga. Escrever é parecido com brincar: a palavra corre e burla, dribla. A palavra dança e atravessa a dança. E se rimos ela ri contente e quando se esconde ouvimos o seu sussurrar de longe, como criança a dizer “pode”. E começa a busca. A palavra nega e por um sim qualquer se faz inteira à sua frente, nua. Escrever é algo leve e se paladar, doce. É a tecido de pétala e beijo de picolé, tropical e moço. Escrever é atar-se ao nó, sem desgosto, já que doer é outro modo.



O coração é uma parte, não se escreve de tudo a sangue. Mesmo adeus se pode escrever com outras tintas e até com a mesma tinta de escrever estação de trem de ferro, pois adeus é vasto e quer dizer, em alguns casos, voltar. Escrever é um exercício de dor. Se o coração for submisso e sobre ele pesar a consciência, aí dói, dói muito. Escrever vira suplício. É necessário esconder-se, vestir fantasia, cobrir o rosto. É preciso proteger-se, mentir. Escrever e se contrariar é escrever por encomenda, para um amor que não se tem.



Assim é que escrever me tem sido tão pungente. Quer o coração que eu seja nuvem, a consciência fala chão. Quer o coração que eu seja rio, a consciência fala pedra. O coração quer ser a rima, compaixão, a consciência a mão. Mão com punhal. Diz o coração; fale levezas! E a consciência solfeja uma canção licenciosa. De que me serve, respondo perguntando, de que me serve fazer de conta?



A consciência quer que eu brade, quer meus nervos e a verve, quer minha palavra de fogo, a palavra com calibre e zanga e eu, servo de coração, presto-me à decifração de casulos? Escrevo sobre velhinhas atropeladas, amigos distantes, cachecóis, paladares e poesia? Será mesmo este o dever de quem escreve num país sombrio; alienar-se, fingir para alentar? Escrever é assim, ser literato e menos literal? Depende, concluo.



Se for do coração a origem é beija flor. Se for da consciência é gavião: um adeja o outro esgana. Sem contar que é impossível falar de amor quando a trilha é um sibilo, falar de leveza quando tudo é fundo. Aos poetas restam versos de trincheira, não os versos encantados e luminosos, cheios de baba e demais sumos. Há que se pedir o verso áspero, o metálico, de aço aos autores de agora.



Textos de luta, textos cáqui e viscerais, textos que ferem e finem. Textos de concreto e que podem ser pontes, os atômicos, que funcionem como bombas. A poesia não serve pura, a pura é vã. A poesia bafeja quando é preciso arder e, assim, dói quando tenta fugir, brincar de esconde-esconde com a consciência e o coração. É impossível bordar uma manhã enquanto o meu país é uma noite funda.



Escrever é um nó que se ata e desata, ata e desata, ata e desata... Neste entrecho escrever é soprar a chama do candeeiro.



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