O salário

Jornal O Norte
Publicado em 15/01/2010 às 09:14.Atualizado em 15/11/2021 às 06:17.

Felippe Prates



O engenheiro Francisco de Sá Lessa, foi um dos mais ilustres diamantinenses que já nasceram. Inteligente, dono de vasta cultura geral, grande administrador, na vida exerceu as funções de prefeito da cidade do Rio de Janeiro, professor e diretor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, a afamada faculdade de engenharia do Largo de São  Francisco e diretor e presidente da Companhia Vale do Rio Doce, durante 11 anos.  Era casado com sua prima, dona Déa de Sá Lessa, filha do ministro Francisco Sá.  A irmã, tia Noemi, casou-se com nosso tio avô e padrinho Luiz Milton Prates.  Atendendo a uma pedido de Papai, seu  parceiro de poker, por quem o Dr.Sá Lessa tinha grande amizade e admiração, naturalmente com a bênção de tia Noemi  e do Padrinho Milton, fomos nomeados, em 1953, aos 17 anos de idade, para trabalhar na Vale como Oficial de Gabinete do Presidente, início de uma carreira que durou 35 anos.



Nem Papai e muito menos nós tivemos a coragem de perguntar quanto iriamos ganhar.  Muita cerimônia, timidez, podia pegar mal, essas coisas de antigamente.  A imaginação funcionava a mil por hora, pois se encontrava aberto o concurso de palpites.  Finalmente, segundo os cálculos de Papai, nos fixamos em mil cruzeiros,  um ótimo salário para um jovem em início de carreira, tudo na pura adivinhação.



Chegou o dia do pagamento, quando iamos receber o nosso esperadíssimo primeiro salário, motivo de tantas conjeturas.  Naquele tempo, o dinheiro chegava  às nossas mãos ao vivo e a cores, em envelopes fechados.  Havia uma folha de rosto e nela passávamos o recibo, após conferir o conteúdo.   O pagador Nunes percorria as diversas seções da empresa, carregando nos ombros uma bandeja com os envelopes de pagamento.  Como na sede, no Rio de Janeiro eramos pouco mais de cem funcionários, a tarefa não era tão difícil.



Com o  coração aos pulos, abrimos o envelope com o nosso nome datilografado direito: Felippe com dois “pês”, Mattos com dois “tês”, Prates com um “t” só, tudo nos conformes.  Lá encontramos a assombrosa quantia de 3 mil e 700 cruzeiros, simplesmente quase quatro vezes mais o esperado!  Não acreditamos!  Lemos e relemos várias vezes tudo o que estava escrito no envelope e, não havia dúvida, aquela fortuna toda era nossa mesmo!



Chegando em casa, Mamãe e Papai quase desmaiaram com o susto que levaram.  Era dinheiro demais!  Papai, um mineiro desconfiado, cauteloso, sugeriu o seguinte:



 - Meu filho, não mexa nesse dinheiro, por enquanto.  Nem um centavo!  Vamos aguardar uns quinze dias.  Se até lá o Departamento de Pessoal da Rio Doce não chamá-lo para corrigir algum possível engano, aí a quantia estará certa e o dinheiro será seu.



E assim foi feito.  Aumentamos o prazo, por via das dúvidas e passados uns vinte dias, como ninguém se manifestára, começamos a gastar o salário recebido.  Demos a Papai, com muita satisfação e muito orgulho, 500 cruzeiros para ajudar nas despesas da casa, o que se tornou uma tradição e durou até nos casarmos.  Além do nosso colégio passamos a pagar, também, a escola infantil do nosso irmão, Newtinho, 50 cruzeiros.  Abrimos um crediário na Casa José Silva onde compramos três ternos e demais roupas para trabalhar.  Abrimos outro crediário na Casa Masson e adquirimos um lindo relógio Mido Multifort!  Mas, o dinheiro não acabava, por mais que nos “esforçássemos”.



Eis que, alguns dias depois, ao chegarmos no escritório para trabalhar, o Vinício, nosso colega da Presidência, nos disse que o José Montarroyos, Chefe do Departamento de Pessoal, nos procurára para tratar de assunto referente ao nosso  salário.



Pronto!  Estavamos arrasados!  Na certa tinhamos recebido dinheiro demais!  E agora, como devolvê-lo se já gastáramos quase tudo?!  Como vai ser, meu Deus!  Será que vamos a júri!?  Descendo as escadas rumo ao Departamento de Pessoal, esses pensamentos ferviam na nossa cabeça, nos sentiamos pai e mãe da insensatez, da irresponsabilidade, um inseto, uma barata, um presidiário abandonado atrás das grades...



O Montarroyos nos recebeu com atenção, nos pediu que sentássemos  e disse:



- “ Seu” Prates, houve um engano no cálculo dos seus vencimentos e eu lhe peço desculpas.  Você é Oficial de Gabinete, um cargo comissionado e faz jus a uma gratificação adicional de 350 cruzeiros, perfazendo um  total de 4 mil e 50 cruzeiros, que é o seu salário mensal.  Pode passar na Tesouraria para receber a diferença.



Num instante a barata virou um leão, emboramente civilizado, manso, mas sem prejuizo da pose, da  pompa e da circunstância...  Dada a volta por cima, nos sentiamos outro homem, firmes, tranqüilos e imediatamente lhe respondemos com voz clara, porém  polida, como se espera de um cavalheiro:



- Eu bem que notei esta pequena diferença no salário, a meu favor, senhor Montarroyos.  Mas, resolvi aguardar, pois sabia que o Departamento de Pessoal, sob seu comando, mais dia menos dia iria corrigir o engano.  Muito obrigado!



Sucesso absoluto!  Encantado, o Montarroyos, dirigindo-se aos seus doze subordinados  ali presentes, exclamou:



- Vocês ouviram?  Ouviram bem?  Este jovem que aqui está é um Prates, tem sangue azul e embora tão novo, com 17 anos, já sabe se comportar como um fidalgo! Vejam e aprendam!  Se ele fosse igual a uns e outros que tem por aí, tinha me crucificado por causa desse dinheiro!



E virando-se para nós, muito simpático e gentil:



- Tive muito prazer em recebê-lo, conhecê-lo melhor,  Felippe Prates.  Espero encontrá-lo freqüentemente,  pois creio que seremos bons amigos...



Queridas leitoras:  Nada mais somos, se não os atores de uma peça que se chama “Vida” e esta é uma pequena amostra do teatro da nossa existência, que surgiu junto conosco, na hora em que nascemos.  Todos nós, artistas do dia a dia, jamais descemos do palco... 



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