Mara Narciso
Médica e acadêmica do curso de Jornalismo da Funorte
Quando o sofrimento físico ultrapassa o tolerável, mudamos os pedidos. Já não sabemos se queremos vida. Não há conformismo, apenas habituação, e as palavras me faltam para explicar como foi a moléstia do meu pai. Como médica, acompanhei dores maiores, mais longas, dignas do termo “tenebrosas”. Meu pai não sentia dor, exceto nas cinco cirurgias de cabeça aberta e as centenas de internações nesses cinco anos.
Na última vez em que foi levado ao hospital, estava com infecção pulmonar e urinária (teve a sonda vesical trocada quatro vezes, nessa ocasião), falta de ar, febre alta, convulsões, e queimadura na barriga, em carne viva. Nas tosses intermináveis, e suas secreções colossais, a sonda escapuliu, e os ácidos do estômago, pela décima vez ou mais, queimaram a sua pele. O buraco da sonda ampliou-se e custou para se ajustar.
Nas crises respiratórias tomava oxigênio, corticóide injetável e aerosol. Na hora das convulsões, o rosto ficava roxo, e o esforço para respirar, indescritível. Era ligado ao oxímetro, aparelho para quantificar a oxigenação, mas feria a mão, pois estava redonda de tão inchada. Isso devido à insuficiência renal, no limiar de uma hemodiálise. Mesmo com o balanço de líquidos, o soro levava ao edema. Um dia formou-se na barriga dele um inchaço assustador.
Fiquei aborrecida com uma tentativa frustrada de pegar a veia subclávia -debaixo da clavícula-, do lado direito. Formou-se uma bola de sangue, então foi puncionado o outro lado. Não era sensato tentar pegar veia periférica, ou mesmo dissecar alguma nos braços, pelo sofrimento e tempo perdidos.
A fragilidade da pele nessa internação, que chegou aos 35 dias, levou a formação de escaras na região sacral e escrotal, mesmo com a mudança de decúbito, óleos e o colchão caixa de ovo. No escroto formou-se um tecido esponjoso que foi cortado pelo urologista. Caso a pele fosse manuseada de forma normal seria arrancada. As feridas abriam-se facilmente nesse senhor de 78 anos.
Por todo o período da internação tomou variadas combinações de antibióticos. Então, se formaram feridas em sua boca devido à candidíase. Uma crosta preta cobriu os lábios e o céu da boca. Fiquei desolada, pois parecia ser o fim. Mas não. Quando o enfermeiro do dia retornou das férias, pai, que raramente abria o olho, manifestou melhora, desinchou, as feridas da boca se fecharam, as escaras melhoraram, a respiração serenou e ele voltou para casa. No dia 25 de janeiro, após meu expediente, fui buscá-lo. Chegando a nossa casa com o bravo guerreiro, estava certa que não seria dessa vez.
Passou bem à noite, sem quase tossir. No dia seguinte, o cabeleireiro veio cortar-lhe o cabelo. Estava consciente, pois ao passar pela sessão de corte, falei assim: pai, Chico veio cortar seu cabelo, para o senhor ficar bonito. Não abriu os olhos, mesmo quando solicitado, apenas apertou o cenho com força, num gesto inquestionável de que me compreendia.
No dia 27 de janeiro, antes de sair para o trabalho, entrei no quarto dele, em frente ao meu, e perguntei ao técnico em enfermagem como estava a situação. Ele mencionou um suor à noite, e falta de ar, mas naquela hora respirava normal.
O dia transcorreu sem novidades, exceto pela urina avermelhada, e pelo meu pedido e que não fosse dado o anticoagulante. Ao passar por ele à noite, ao sair, achei que o cabelo tinha ficado curto demais. Deixei pai na cadeira-de-rodas, em frente à TV, junto com o técnico em enfermagem. Quinze minutos após a minha saída, o rapaz me informa que pai estava em crise convulsiva. Como eram comuns, e já estava medicado, pedi para esperar alguns minutos e reavaliar. Ele me disse que iria chamar o SAMU, pois o pulso estava fraco. Em seguida voltou a me ligar dizendo que o coração dele tinha parado.
Em dois minutos eu estava em casa. O carro do Samu, atravessado na rua, em frente a minha porta, todo aberto, mostrava as luzes piscando. A casa tinha a porta escancarada, e entre quatro homens uniformizados com macacões azuis, injeção de adrenalina e monitor cardíaco, pai jazia no chão, da cor da morte, enquanto eles tentavam uma ressuscitação. O chefe da equipe perguntou o quanto deveria insistir. Falei que fizessem uma manobra, e caso não respondesse, parassem. Tive de vê-lo sendo submetido a essas coisas feias que a medicina inventa na derradeira hora. Momentos depois, às 21h15min, ele foi considerado morto e o corpo foi levado para a cama. Acabou. Ficou um buraco, mas a morte foi solução, não problema.
Chamei a funerária, fui junto assinar a papelada, escolher roupa, flores, tipo de cerimônia. Meu filho tinha falado com algumas pessoas, eu tinha ligado para outras e para o médico que o tinha atendido, para dar o atestado de óbito. Ao vê-lo arrumado no caixão, após os cuidados dos bravos agentes funerários, deixei-o e fui para casa. De manhazinha o velório começou, e muitas pessoas, entre familiares e amigos compareceram. Também foi anunciado numa rádio local. A cerimônia, incluindo a encomendação do corpo pelo padre João Batista Lopes, durou cinco horas. Fomos ao cemitério levá-lo, e terminou. Ontem, embalei o que ele usou nos seus últimos dias, e solicitei ao asilo que viesse buscar.
Era hora de enfrentar a casa vazia. Deparei comigo mesma, numa situação em que, por alguns anos não sabia como era. Meus atos faziam conexão com o estado de doença do meu pai, com os técnicos em enfermagem permanentemente aqui em casa, naquela presença laborativa e silenciosa, só interrompida pela tosse dele, que por vezes ainda ouço.
Abriu-se uma avenida sem direção, surgiu meu direito de ir e vir, e eu podendo ser o centro da minha vida. Alívio, suspiro, certeza de missão cumprida nos preceitos sociais e filiais. As lágrimas caem fáceis. O peso da dor virou parte de mim, de tal forma, que, ao me faltar, sinto-me desequilibrada, já que o sofrimento dava-me prumo.
O que fazer com toda essa liberdade?