O processo educacional brasileiro

Jornal O Norte
19/12/2008 às 10:13.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:53

Marcelo Valmor


Professor mestre em História das culturas políticas/UFMG e professor da Unimontes


fmarcelovalmor@yahoo.com.br

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o governo Vargas sofre pressões internas e externas para flexibilizar o regime e democratizar o país. As pressões são bem sucedidas, é convocada uma Constituinte e promulgada uma nova Constituição (1946) que permite ao Brasil, depois de quinze anos de ditadura, ter um processo eleitoral com partidos, agora, ao nível nacional. O candidato apoiado por Getúlio Vargas, Eurico Gaspar Dutra, assume sob a bandeira do liberalismo e abre o país para entrada de produtos estrangeiros, esgotando, rapidamente, as divisas acumuladas durante a ditadura de Getúlio. O alinhamento com os Estados Unidos trazem modificações importantes na economia e o liberalismo norte-americano também se fará sentir no processo educacional.

A penúltima Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), promulgada em 1961, traz bem esse caráter liberal ao qual estamos nos referindo. A referida Lei consagra o princípio de que o Estado deveria atender aos dois setores que organizam a educação brasileira as mesmas condições de atuação. Por isso, no artigo 95 da Lei 4024, é garantida a presença de proprietários de escolas privadas nos Conselhos Estaduais de Educação, e, ao mesmo tempo, a Lei também disponibiliza recursos públicos para que sejam convertidos em empréstimos para os proprietários de escolas particulares.

Durante esse período (1947-1961), tivemos várias experiências no campo educacional, sobretudo tentativas de se erradicar o analfabetismo em nosso país.  Mas, apesar delas, os projetos não surtiram os efeitos desejados. Assim, podemos citar a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos no governo Dutra (1947); a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo do gov. J.K. (1958), além de algumas experiências nos primeiros anos da década de 1960.

Mas talvez a experiência mais importante que o Brasil conheceu em termos de Alfabetização tenha vindo do método pedagógico de Paulo Freire denominado “Pedagogia do Oprimido”.  Paulo Freire nasceu em Recife, e suas primeiras experiências educacionais são efetuadas em 1962, em Angicos, no Rio Grande do Norte, onde 300 trabalhadores do campo se alfabetizaram em 45 dias. O impacto desse resultado é tão grande que Miguel Arraes, então governador de Pernambuco, autoriza um trabalho semelhante nas favelas de Recife e, em seguida, em todo o estado. Também o governo federal se interessa pelo projeto e pretendia organizar 20 mil “Círculos de cultura”, a fim de atingir cerca de dois milhões de adultos por ano.

A Pedagogia Libertária de Paulo Freire pode ser assim sistematizada: vivemos em uma sociedade de classes, na qual os privilégios de uns impedem a maioria de usufruir os bens produzidos. Se a vocação humana de ser mais só se concretiza pelo acesso aos bens culturais, ela é negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores, mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, na luta dos oprimidos pela recuperação de sua humanidade roubada.

Um desses bens é a educação, que é vista por Freire como uma prática de liberdade. Mas segundo ele, a liberdade é algo inerente à condição humana e deve ser buscada pelo próprio indivíduo e dividida com os demais. O processo educacional, portanto, elabora ferramentas capazes de fazer os indivíduos se reconhecerem como produtores materiais e culturais, e, portanto, sujeitos que podem e devem apropriar das riquezas produzidas pela sociedade e se realizarem como seres humanos. É perceptível, portanto, o caráter ideológico contido no método pedagógico de Paulo Freire, e que assustou a elite brasileira e “empurrou” o país para um Golpe de Estado em 1964, que iria não só proibir a adoção da Pedagogia dos Oprimidos como método de alfabetização e conscientização dos grupos marginalizados economicamente, mas, sobretudo, levar o Brasil para uma Ditadura Militar que se estabelecerá no poder até 1985.

Os militares, a partir de 1964, tem um projeto político e econômico para o Brasil, e, portanto, viam na educação um elemento fundamental para alavancar esse novo modelo. Visão correta, portanto, a de enxergar, na educação, uma ferramenta importante para o desenvolvimento econômico, mas que se mostrou equivocada quando foi posta em prática pelos sucessivos governos militares, principalmente até o fim dos anos de 1960.

Preocupados em desenvolver economicamente o país, os militares vão estar prescrevendo um modelo educacional que começa com a liquidação da representação estudantil ao nível nacional (UNE), e valorizando os Diretórios Acadêmicos (Das) e Diretórios Centrais de Estudantes (DCEs), num claro indicativo de que estudante tinha que estudar e não fazer política. O segundo passo foi a instituição de disciplinas capazes de formar homens sem a mínima visão crítica sobre o conjunto político e econômico do país. Disciplinas como Moral e Cívica para o primeiro grau, OSPB (Organização Social e Política Brasileira) para o segundo grau e EPB (Estudo de Problemas Brasileiros) para o ensino superior constituem essa nova roupagem que a escola deveria adotar para que os estudantes não ficassem pensando em política, e pudessem se dedicar à exaltação da pátria, e, conseqüentemente, do modelo político e econômico adotado pelos militares.

Mas a grande mudança observada nesse período é a implantação da reforma tecnicista que atravessa a educação com os ideais de racionalidade, organização, objetividade, eficiência. Por isso, as reuniões de planejamento definem objetivos instrucionais e operacionais rigorosamente esmiuçados, estabelecendo o ordenamento seqüencial das metas a serem atingidas a fim de evitar “objetivos vagos”, que dêem margem a interpretações diversas. Nessa perspectiva, o professor é um técnico, que assessorado por outros técnicos e intermediado por recursos técnicos, transmite um conhecimento técnico e objetivo. Portanto, o objetivo da reforma tecnicista é duplo: primeiro porque forma mão-de-obra especializada para o grande salto de desenvolvimento industrial que ficará conhecido como “milagre brasileiro”; segundo porque não permite que se formem cidadãos críticos e prontos para interferir no processo político brasileiro como deveria ocorrer em qualquer país que pretendesse um desenvolvimento econômico.

O processo de alfabetização, durante esse período, vai caminhar nesse sentido também. Para tentar minimizar o problema dos precários índices de alfabetização, em 1967 é criado o Mobral, que começa a funcionar de fato em 1970, época em que a taxa de analfabetismo de pessoas de mais de 15 anos chega a 33%. Em 1972, cai para 28,51%. O programa de alfabetização utiliza o consagrado método Paulo Freire, só que esvaziado do conteúdo ideológico, considerado subversivo. Há, pois, uma adulteração indevida do método, impensável sem o processo de conscientização.

Estudos mostram o baixo rendimento alcançado pelo programa, se levarmos em conta o grande número de inscritos. Esta avaliação torna-se menos otimista ainda quando se verifica que nem sempre a aprovação significa desempenho de leitura, pois muitos dos “alfabetizados” permanecem analfabetos funcionais, sem desenvoltura para ler e mal sabendo desenhar o próprio nome.

Em fins dos anos de 1970 o país passa por um processo de abertura política lenta e gradual. Os exilados políticos chegam às dezenas, o ABC paulista ferve com as greves na indústria liderada pela CUT de Lula, Menegueli, entre outros. Brizola e Darcy Ribeiro desembarcam no Rio de Janeiro, Fernando Gabeira provoca escândalo na praia ao usar uma tanga de crochê e defender o uso da maconha. Comícios começam a ser organizados exigindo a volta à normalidade democrática. Milton Nascimento, Chico Buarque, entre outros artistas, se engajam em campanhas políticas, e, finalmente, o país começa a respirar ares de liberdade que irão ter um reflexo importante também no setor educacional.

A teoria construtivista de Piaget começa a ser abordada tendo como pano de fundo a realidade educacional brasileira; os modelos dialéticos marxistas igualmente inspiram os educadores brasileiros no final de 1970 ao procurarem reelaborar a nossa educação. No final da década de 1970, um grupo de filósofos e pedagogos passa a rever a nossa educação, iniciando uma teoria que se encontra ainda em processo de formulação. Recebeu diversas denominações, entre as quais, pedagogia crítico-social dos conteúdos, pedagogia dialética e, finalmente, pedagogia histórico-crítica.

A tarefa da pedagogia histórico-crítica se insere na tentativa de reverter o quadro de desorganização que torna uma escola excludente, com altos índices de analfabetismo, evasão, repetência, e, portanto, de seletividade.

Paralelo a toda essa discussão, toma posse, em 1985, o primeiro presidente civil após o regime militar. José Sarney, como todos os outros, lançará, em 1985, a Fundação Nacional de Educação de Jovens e Adultos-EDUCAR; posteriormente, Fernando Collor de Melo lançará o Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (PNAC, em 1990), para, logo em seguida, em 1993, o presidente que sucede Collor de Melo lançar o Plano Decenal de Educação para Todos. Todos esses modelos careceram de uma maior organização e disponibilização de recursos para serem implementados de forma efetiva, e acabaram redundando em experiências, que longe de promoverem a alfabetização sincera e crítica do indivíduo, acabaram por reforçar os modelos sociais e econômicos excludentes que tanto caracterizam a educação brasileira.

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