Everaldo Ramos
Professor de História e Geopolítica, coordenador do Projeto de Educação Popular
Há era quase meia noite quando a menina Eloá aqui chegou. De pronto foi recebida por um coro de anjos que, como ela, foram vítimas dos monstros que aí embaixo ainda insistem em chamar de gente. Logo na chegada, recebeu um afetuoso abraço da menina Isabela que, há pouco tempo, aqui chegou, trazendo no pescoço as marcas da esganadura e no corpo as escoriações oriundas da brutalidade, supostamente ao que tudo indica, praticada pelo próprio pai.
O diálogo entre as duas foi breve, só escutei um: “Seja bem vinda, torci muito por você”; dizia a menina Isabela que foi prontamente respondida pela Eloá: “Fiquei muito comovida com o que aconteceu com você”. De longe, jogando bolinha de gude João Hélio e Sidnei observam atentamente, a chegada da mais nova companheira. Incrédulo Sidnei pergunta: “Por que ele fez isso contigo? Daqui vimos ele dizer que te amava tanto?”
Com semblante triste olhar desfigurado, Eloá responde cabisbaixa: “Não sei, as coisas lá embaixo estão cada vez mais malucas, amiguinho. As pessoas matam dizendo que amam, acham que somos como um brinquedo que podem mandar na gente, que podem fazer da gente o que bem entenderem. Sinceramente não sei o que aconteceu na cabeça dele. Espero que Deus o perdoe, mas rogo que a justiça prevaleça”.
Impressionado com tanta candura, o menino Sidnei depois de um olhar contemplativo abre seu coração: “Comigo foi assim também Eloá, achei que aquele monstro iria me dar balas como me dissera, lutei com todas as minhas forças para me livrar dele, chamei por meu pai, por minha mãe, mas, para minha tristeza, ninguém ouviu. Também rogo a Deus que o perdoe, mas também queria muito vê-lo pagar pelo que fez comigo”.
De repente os dois são interrompidos por um toquinho de gente de nome João Hélio. Pequeno no tamanho, mas de uma sabedoria inigualável. Foi ele que, com sutileza filosófica, assim resumiu o que esta acontecendo na terra: “Sabe, gente? acho que lá embaixo tá tudo errado. Tudo mesmo. As crianças são tratadas como adultos, apanham, sofrem padecem na mão de monstros como aqueles que infelizmente nos conhecemos. Já os adultos, às vezes, são tratados como crianças. A lei tem pena deles. Eles fazem um tantão de coisas erradas, uns roubam outros traficam, outros violentam, outros matam e a maioria fica impune. Aparecem uns caras engravatados que não tem vergonha de falar que eles são inocentes. Eu acho que o dinheiro vem fazendo as pessoas esquecerem das cosias boas. Compra-se armas em qualquer esquina, drogas são vendidas como se vendem balas. Ah, e tem outra coisa, Eloá, esse negócio que aquele cara falou que te amava é tudo mentira isso não existe. Olha só minha mãe me dizia que me amava muito e isso sim era verdade, pude perceber no seu olhar o dia que roubaram seu carro. De dentro do carro, ouvi com tristeza seus gritos chamando por mim e de longe vi, no brilho do seu olhar, sua tristeza em saber que estava me perdendo. Fui arrastado por mas de quinhentos metros presos o cinto de segurança, ouvindo minha mãe dizer que me amava. Isso, sim, Eloá é amor. Quem ama não mata. Quem ama dá a vida. Isso sim é amor”.
Do meu canto não me contive. Acabei entrando na conversa infanto-juvenil. Como quem tinha mais experiência. Fui logo lhes relatando minhas experiências vivenciadas na Índia do século XX: “Também, como vocês, fui vitima da violência que tanto combati. Durante minha vida, lá embaixo, por diversas vezes tive a coragem de ensinar aos outros que era preciso resistir de maneira pacificamente, que a violência gera sempre violência. Mas não me ouviram, ignoraram tudo que ensinei e olha só hoje lá para o país de onde vim, até bomba nuclear eles já têm. É muito triste saber que o mundo esta cada vez mais cruel, que nem anjos como vocês são poupados de tantas crueldades. Daqui do meu canto acompanhava atentamente o encontro de vocês, confesso-lhes que fiquei impressionado com a capacidade de cada um em perdoar seus algozes, e como anjos rogarem a Deus o perdão para cada um deles. Seja bem vinda menina Eloá, aqui lhe mostraremos verdadeiramente o que é amor. Aqui lhe ensinaremos que o amor é partilha, coleguismo, compreensão, carinho e afeto. E isso aqui tem de sobra. Aqui não encontrará um coração perverso que inconseqüentemente não relutou em interromper vida promissora, num ímpeto de possessividade medieval e animalesca.Venha menina Eloá, venha se sentar ao lado dos justos, venha compartilhar junto conosco da companhia daquele que tanto nos ama e nos quer muito bem. Venha se aconchegar nos braços daquele que chamamos de pai.”
Assim que terminei de falar todos me puxaram aos gritos e me levavam em direção a um vale por onde Deus costuma passear. Quando lá chegamos, com bom humor de sempre, eis que ouço uma voz dizendo em tom de contentamento: “Lá vem Ghandi e sua escolinha de pacifistas”.