O menino do carrinho de picolé

Jornal O Norte
Publicado em 03/05/2011 às 09:14.Atualizado em 15/11/2021 às 17:26.

Everaldo Ramos (*)



Era domingo. Como sempre fazia me levantei às seis da manhã. Por mim, ficaria mais um pouquinho na cama, mas a vida dura que levava infelizmente não me permitia esse privilégio. Nasci numa família humilde, minha mãe, coitada, dava um duro danado pra colocar comida na nossa mesa. Meu pai, nunca tive o prazer de conhecê-lo, muito pouco sabia a seu respeito.



Como fazia todos os dias, naquele domingo acordei cedo para mais um dia duro de trabalho. Meu ofício, em função das circunstâncias, era o de vendedor de picolé. Mesmo não sendo o melhor de todos, o fazia com a dedicação de quem lutava para sobreviver. Após um rápido café, desacompanhado é verdade, calcei meus já surrados chinelos de borracha, e rumei em direção a sorveteria, para iniciar minha lida.



Sob sol escaldante do verão norte mineiro, dirigi-me ao campo de futebol do Vera Cruz, repleto de expectadores, na esperança de poder vender os cinqüenta picolés que se encontravam comigo. A cada não, renovava a esperança de poder, ao final do dia ter meu objetivo cumprido; voltar para casa com um pouquinho de dinheiro para ajudar minha mãe.



No auge da minha inocência adolescente, imaginava poder um dia ganhar muito dinheiro e tirar minha mãe e meus irmãos da pobreza extrema que vivíamos. Sonhava em ter uma casa, um salário, um carro e tudo aquilo que pudesse significar um mínimo de conforto.



O jogo já estava quase no final, ainda aflora na minha memória a imagem fatídica do que iria me ocorrer. Num campo desses de várzea, onde a poeira o sol e o suor são ingredientes presentes nas disputas, me lembro que, depois de um chute ao gol do time que jogava com as camisas azuis e que por sinal estava perdendo, a bola passou rente a trave, quase liquidando o placar. Ali posicionado atrás do gol, no afã de querer ser solícito, eis que me predispus a buscar a bola, chutei forte para que a mesma pudesse chegar às mãos do goleiro. Tamanha a minha infelicidade, a bola tomou rumo ignorado, fazendo com que despertasse naquele ser, uma fúria incontrolável, externada na forma monstruosa como ele passou a me agredir. Deu-me vários chutes no dorso, barriga e pernas, diante de uma platéia inerte e covarde que se limitou apenas a assistir tal barbárie.



Fui embora com as pernas trêmulas e combalidas pela dor. Na semana seguinte minha mãe me levou a um hospital, onde fora constatada grave lesão na minha perna direita. Fui internado às pressas e para minha tristeza, os médicos foram obrigados a amputar a minha perna. Minha mãe, coitada, não se continha em lágrimas. Quando recobrei os sentidos, me dei conta que havia sido amputada a minha perna direita. O vazio tomou conta da minha alma e as lágrimas não foram contidas.



Na semana seguinte, dada a gravidade do problema, os médicos resolveram amputar a minha outra perna. Resignidado, sofrendo calado, não conseguia sequer me lembrar da fisionomia do meu algoz. As semanas que se passaram foram as piores da minha vida. Dado ao meu estado de fragilidade fisiológica, cada infecção que tinha, era como se fosse uma grande batalha que teria que travar pela vida.



Não resisti. Entendo que Deus tinha outro propósito para mim. Usou minha vida, minha história e minha dor, para que pudesse lecionar a todos que por ai ficaram como a vida anda banalizada. Como as pessoas se tornaram insensíveis e como o descontrole tem tomado conta de todos. Mata-se por causa de um real, dívida de droga, uma discussão no trânsito. Muitos se esquecem, que a vida deve ser respeitada, que é preciso se esforçar para encontrar a Presença Divina, no menino que vende picolé, no senhor que se encontra embriagado, esquecido pela família e pelos governantes, na prostituta esquelética, enlouquecida pela crak a quem muitos reservam um sorriso de deboche. Deus se encontra presente em cada um desses seres e em outros mais, mas parece que a isso poucos compreendem.



A cada dia a humanidade tem perdido a capacidade de amar uns aos outros. As guerras, antes envolviam; nação contra nação, hoje, já fazem parte do universo familiar. Irmão mata irmão, marido mata esposa, filho mata pai e pai mata filho. As tragédias familiares ganham destaque na mídia ávida por fatos sensacionalistas.



Da pena, perceber que a cada dia que passa o homem se torna mais irracional, ao pautar as suas condutas pelo ódio e monstruosidade. Oxalá o mundo possa perceber que o Deus que é nosso pai e que tanto nos ama, está presente na simplicidade dos humildes e no sofrimento dos desafortunados. Que a sua benevolência reside na candura das crianças e na inocência dos justos e que esse mesmo Deus sofre em demasia com a barbárie das guerras da violência descambada e principalmente quando seus filhos se distanciam dos seus propósitos. Mas diante de tamanha desilusão ele nunca desiste. E às vezes usa exemplos como o meu, para tocar os corações empedrados daqueles que ainda insistem em ignorá-lo. 






PS *Esse texto é dedicado memória do filho de Dona Sebastiana, protagonista real da história que ousei contar, e a todos os meninos que vendem picolés por ai a fora.



(*) Professor de História e bacharel em Direito

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