João Caetano Canela
Médico e cronista
Passeio pela Praça da Matriz com a minha nostalgia. É uma imprudência que cometo, eu bem sei.
A praça já não é a mesma. Nem eu. O que estou fazendo ali?
- Cuidado com assalto, amigo – adverte-me um lavador de automóveis que conhece os perigos do local.
Devo lembrar a esse lavador de carros que “A praça é do povo assim como o céu, do condor?” Não, não devo, pois sei que hoje a praça é dos bandidos assim como o céu, dos aviões.
Oh, se soubesse dessa realidade atual, que tristeza sentiria Castro Alves! Ainda bem que o poeta já não mais se encontra em condições de saber coisas deste mundo...
Mas eu vou me acautelar na praça, vou sim, até porque sei que corro duplo risco ali: ser assaltado não apenas por bandidos, mas também por lembranças. Aliás, inútil que me acautele quanto a lembranças, pois bastou que me acomodasse, num dos bancos do jardim, para que uma recordação imediatamente me atacasse.
Vejo-me no largo da Matriz. Sou um garoto e estou envolvido numa acirrada pelada, juntamente com meus companheiros. Tão envolvidos nos encontramos, que não nos damos conta de que algo incomum se passa acolá: ninguém menos que Juscelino Kubitschek chega com sua comitiva para uma visita à nossa Prefeitura Municipal, cuja sede é numa casa ali na praça.
O Presidente está na cidade, veio para as comemorações do nosso Centenário - e é ele, em pessoa, que salta de um dos automóveis que estacionam diante da Prefeitura.
O Presidente passaria despercebido a nós, certamente, caso um transeunte, ávido por ver Sua Excelência e trotando na direção da Prefeitura, não tivesse nos alertado assim:
- Vamos receber o Presidente da República, cambada!
A esse alerta, abandonamos a nossa pelada e também corremos para a porta da Prefeitura, na ânsia de ver o Presidente bossa-nova.
Não sei de onde surgiu tanta gente. E todo mundo quer ver de perto o Presidente. Eu também quero. E, assim, vou-me embrenhando entre os circunstantes, meio a esmo, a ponto de até burlar o cordão de isolamento...
E então, eis “o homem”, bem à minha frente. Não, não tem a imponência que eu imaginava. Mas, pelo que diz uma senhora a meu lado, tem imenso magnetismo pessoal. Eu, com meu juízo de menino, o acho simpático. Aliás, simpaticíssimo, principalmente quando sorri – e ele quase sempre sorri. Além do quê, me impressiono com a sua apurada elegância dentro de um terno escuro que enverga impecavelmente.
Já se vai internando na Prefeitura quando ouve o coro:
- JK! JK! JK!
Então se volta e acena ao público, que delira com sua presença sedutora e seu sorriso inefável.
No meio daquela gente, sou um menino que vai aprendendo a amar Montes Claros - uma cidade que, embora poeirenta e caipira, me deixa orgulhoso de ter prestígio suficiente para se fazer visitada por um chefe de governo da importância de JK.
Eu não voltaria a ver outra vez na vida Juscelino Kubitschek, não pessoalmente. E essa viva figura dele naquele dia, em carne e osso ali na praça, jamais se apagou de minha memória, jamais.
Corro os olhos pela praça, avalio derredor: não é mais aquele doce e tranqüilo logradouro que um dia o Presidente JK pisou. A fervilhar na presença humana, infestada de automóveis, bicicletas e motos, a Praça da Matriz se tornou hoje um espaço agitado, caótico, neurótico, que não se presta mais ao sossego dos adultos nem ao recreio da meninada. Além disso, completamente descaracterizada, já não conta mais com o encanto do antigo conjunto arquitetônico do seu entorno, quase todo demolido.
No entanto, dizem que o coração da velha Montes Claros ainda pulsa na praça. Os moradores mais antigos é que dizem isso, pois não só escutam os queixumes da velha cidade em que habitam como também auscultam o seu ritmo cardíaco. Antigos moradores, sim, já que os modernos, no retiro contemporâneo dos bairros novos e nobres, sequer sabem que Montes Claros tem Praça da Matriz, que dirá coração.
Oh, essa gente, de usos e abusos modernos, com suas casas novas em condomínios de luxo novos não se importa com a velha Montes Claros. Mas eu me importo. E é esperando poder sentir o pulsar do seu coração que estou ali praça.