Alberto Sena
Jornalista
No tempo em que se podia empinar papagaio, pipa ou arara com linha sem cerol, linha com cerol era a coisa mais rara. Os embates eram na munheca mesmo ou na manivela e não com o intuito de corta a linha, mas laçar e trazer para si o papagaio (a pipa ou a arara) do outro.
A brincadeira, em Montes Claros de antanho, era emocionante. Até mesmo quando acontecia de o papagaio (a pipa ou a arara) chegar às mãos juntamente com o outro, bufando, querendo tirar satisfações. Mas como não havia cerol nem maldades tantas como hoje em dia, tudo se resolvia na santa paz de Deus. Bastava devolver o papagaio (a pipa ou a arara) e o outro ia embora sorrindo.
Essas lembranças vêm, juntamente com a chegada do mês de agosto. O mês de agosto, em Montes Claros, era especial. Sopravam bons ventos. Não ventos como os do livro ‘O Morro dos Ventos Uivantes’, da escritora e poetisa (melhor poeta) britânica, Emily Jane Bronte, que o escreveu sob o pseudônimo masculino Ellis Bell.
Mas ventava. Montes Claros cresceu num planalto. De morro mesmo, possui dois: ‘Os Morrinhos’ e ‘Os Dois Irmãos’, além, claro, dos claros montes. Então, quando agosto chegava, era um correr aos bambuzais em busca de taquara para fazer papagaio (pipa ou arara). Ia à papelaria Barroso, na Rua Simeão Ribeiro, para comprar papel de seda ou impermeável. Fazia grude com goma de biscoito, melhor do que maizena (com ‘z’, porque é uma marca) e na pior das hipóteses, ‘assaltava’ a gaveta da máquina de costura Elgin de dona Elvira, se não se dispunha de dinheiro para comprar um carretel de linha número 10, mais recomendável.
Dependendo do tamanho do papagaio (da pipa ou da arara) o melhor era cordonê, mais grosso e resistente o bastante para os embates do menino. Até de noite se podia empinar papagaio (pipa ou arara). O problema era não poder vê-lo na escuridão. Mas era divertido sentir os toques dos morcegos na linha. Eles, que, cegos, inspiraram os nossos atuais radares.
Mas, sob o rachar dos raios do Rei Sol na moleira e no pó da rua, era uma bênção poder empinar papagaio (pipa ou arara). Só quem é criança experimenta a sensação e poderá dizer. Tem-se a impressão de que o papagaio (a pipa ou a arara) é o prolongamento do espírito. É como se se transportar lá para o alto. E de lá do alto, mais perto do céu de Deus, espiar as pessoas aqui embaixo. O coração corre o risco de saltar pela boca, emoção tamanha.
O papagaio (a pipa ou arara) era feito com papel de cores diversas. Podia ser ‘sureco’, que se fecha quase todo quando se dá puxões na linha, ou com ‘rabiolas’ e ‘braceletes’. Lá do alto, o papagaio (a pipa ou a arara) ficava dançando e olhando pra gente.
O ruim era quando acontecia de a linha partir. Lá se ia embora. Era preciso sair correndo atrás para tentar recuperar o danado do papagaio (da pipa ou da arara).
O bom era quando se dispunha de uma manivela. Melhor ainda quando a manivela tinha quatro, oito ou 16 cruzetas. Quanto mais cruzetas, mais rápido é o ato de recolher a linha. O sobrinho Reinaldo Batista Murça, que neste momento lê este texto, prometeu, dia desses, dar de presente uma manivela de 16 cruzetas para substituir uma dada por ele mesmo, décadas atrás, que alguém surrupiou.
Enquanto não há tempo (conversa pra fazer boi dormir, porque tempo a gente faz) para confeccionar um papagaio (uma pipa ou uma arara), espero o sobrinho providenciar a nova manivela de 16 cruzetas. E daqui da janela viajo nas asas dos papagaios (das pipas ou das araras) dos meninos de hoje.
A diferença é que a linha deles tem cerol. E o cerol, volta e meia, degola motoqueiro incauto, que não protegeu o pescoço com um par de arames adaptados na frente da moto. A única diferença é essa, porque o adulto continua criança. O espírito infantil não pode ser assassinado pela crueza e a selvageria do mundo adulto.
Então, o espírito fica debruçado na janela, à espreita. Aguarda a manivela de 16 cruzetas, a fim de ter pretexto para fazer um papagaio (uma pipa ou uma arara) e ganhar os céus de agosto. Com muita alegria e gosto. Como sempre.
O problema é o cerol da linha do outro.