Marcelo Braga
Em 4 de outubro, Túlio e Luciana se casaram.
Trata-se de um grande amigo meu, dos tempos de colégio.
Não conseguiria contabilizar as gargalhadas que já compartilhamos.
Mais um amigo meu que se vai pelas mãos dessa dama esplendorosa, radiante e cheia de incertezas previsíveis que é a união matrimonial…
Para coroar esse mistura de alegria e pesar, resgato abaixo um episódio, que vivemos juntos. Uma espécie de despedida de solteiro e um pedaço de meu presente para os noivos!
Com meus mais sinceros votos de felicidades e eternidade!
Na fazenda da família de Túlio, cria-se cavalo.
E, para minha sorte, lá também vive Pratinha, a mula.
De pelagem cinzenta e baixíssima estatura, caiu como uma luva em minhas humildes ambições de cavaleiro. Porque nunca me importei em ficar pra trás, mesmo que a distância que me separasse do grupo fosse de duas léguas e meia. E, façamos justiça, minha montaria predileta só faz um pouco feio nas subidas, como qualquer meio de locomoção de motor 1.0.
Ah, o tamanho de Pratinha! Parece até que fomos feitos um para o outro! É alentadora a certeza de que, num insólito e inimaginável desequilíbrio meu, seria como saltar de um corriqueiro degrau.
Mas pode haver percalços escondidos até mesmo numa relação tão respeitosa e azeitada como a minha com Pratinha…
E, de fato, deu-se a lástima num fim de semana pacato e já longínquo, que hora me vem à lembrança, pelo advento desse casório festejado.
Já adianto que o dom da mentira é de Túlio, não meu. Aumento coisa ou outra e crio histórias. Essa realmente aconteceu. E não faria favor algum em roubar do astro o espetáculo. Sorte de vocês que o contador hoje sou eu. Podem acreditar!
Domingo não é um dia que comova muita gente. Daí que não vou perder tempo pranteando a metade do domingo que já se passara. Mas já havíamos almoçado, brincado com a espingarda de chumbinho, apreciado um pouco da cachaça, proseado um bocado, rolado de rir… quase hora de colocar a viola no saco e o pé na estrada.
Resolveu-se sair para curta cavalgada. Eu mesmo não resolvi nada! Até porque senti certa discriminação, analisando que minha dupla era uma mula, mas… não seria eu a estragar a festa. Se Pratinha quisesse se indignar…
Ao menos, não havia o sol na moleira! Já estava pouco e bom!
Valeu-me como uma expedição aos confins do desconhecido, pois ainda não conhecia o lugar que abrigava o primeiro cruzeiro que a cidade de Belo Vale já teve.
O morro íngreme que subimos presenteou-nos com um belo pôr-do-sol, com matizes incertas, algo entre vermelho-róseo e laranja-cínzeo (já aviso que não cabe neste espaço arrependimento pelo uso de certo humor interno!).
Não há como lembrar se algum alerta me soou, quando Túlio nos propôs que descêssemos para o outro lado do morro, por um caminho “mais rápido”, como ele mesmo disse, mas “com muito espinheiro”… O que posso assegurar é que tentei contestar a decisão. Que já fora tomada…
Largados para trás, eu e Pratinha possivelmente oferecemos ao vale um semblante parecidíssimo, que não adiantará tentar descrever agora.
A poeira levantada pelos cavalos pairou no ar por incontáveis segundos. Até que eu e a mula resolvêssemos segui-los.
Pareceu-me ouvir o eco do diálogo que dava conta de que Túlio conhecia o caminho que tomávamos. Nessa época, já não fazia parte de minha inocência acreditar em Túlio! Conheço-o bem demais para duvidar dele sempre.
Imersos na vegetação, já não os via. À medida que os espinhos iam me ferroando, gritava, pedindo que esperassem. Sabia que Pratinha também sofria com os castigos da mata, pois me olhava, compungida, com cada nova ferida que ganhava. Senti que aquilo poderia abalar nosso relacionamento, mas a culpa não era minha! Não tínhamos como ficar para trás! Precisávamos seguir o grupo! Pratinha acabaria me entendendo…
Em resposta aos meus apelos, ouvi algumas vozes, tentando nos guiar. Risos, também… Mas a adversidade nos proporciona a oportunidade de lidar com sentimentos de uma forma muito nobre! Um desprendimento nasceu, onde, outrora, só haveria rancor. Seguimos as vozes, eu e Pratinha.
Passo a resumir o relato, para que não lhes pareça tão tortuoso quanto o caminho que se foi desenhando sob nossos cascos. Estreito e bastante perigoso, não comportava qualquer exagero!
Foi aí que me desentendi com Pratinha… e aquilo me doeu mais que todos os espinhos! Agora mesmo me subiu à boca um amargor, apenas pela lembrança…
Vejam que ela resolveu empacar. Por nada se movia!
Tive de apear. Muito cautelosamente, para não despencar barranco abaixo.
A rédea firme na mão, passei a guiar Pratinha, que vacilava amedrontada. Joguei inúmeros beijos no ar, chamei-a carinhosamente, na vã tentativa de seduzi-la, de dissuadi-la a fazer algo que nem mesmo eu estava muito certo de fazer.
Foi exatamente após proferir: “Vamos, filhota! Ô, neném…”, que ouvi irromper a gargalhada de Túlio na mata fechada. O verde me impedia de vê-lo descer do cavalo e rolar de rir às minhas custas. Foi melhor assim!
Meu desconforto só amainou quando as gargalhadas cessaram. Substituindo-se pelo mais completo desespero, ouvindo Túlio dizer que o caminho acabara logo à frente de si.
Eu quis matar alguém…
Pratinha fitou-me com olhos aflitos. Na testa, estampado o protesto, não retornaria nem a paulada.
O grito que me saiu revelou-me todo o desatino que nos envolvia: “Como se faz para dar marcha à ré numa mula?”. Nem riso houve em resposta.
Como não havia espaço sequer para eu passar por ela e puxá-la de volta, tentei um movimento de rédea, arrisquei empurrões em seu pescoço…
Pareceu-me absurdo pedir licença a Pratinha, dependurar-me em seu pescoço e tomar o caminho de volta. Mas foi o que deu resultado.
Chegamos à clareira como quem volta de um combate.
Túlio também se apresentava em frangalhos. Mas trazia nos lábios a doçura das gargalhadas fáceis.
Já era noite alta, quando retornamos à fazenda.
Antes de pegar estrada, ainda tive que reviver tudo aquilo pelas palavras de Túlio, que reuniu a família para exagerar um pouco, a seu modo, minha desventura.
Aconteceu, mesmo. Desse jeitinho que contei.
Agora, já pode beijar a noiva!