Haroldo Tourinho Filho
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Muito se escreveu e muita tinta ainda vai rolar para se falar sobre essa personalidade ímpar que acaba de nos deixar: Hélio de Castro Guedes. Deve-se a seu pé, planovalgo flexível (pé chato), o apelido, Patão.
Agudo observador, desenhista de mão cheia, pintor de telas que retratam a paisagem rural norte-mineira (notadamente seus vários céus e “quebradas”) e o casario colonial de nossas cidades (dentre elas aquela que mais amou, sua terra natal, Montes Claros), Pato também foi figurinista (para quem não sabia), decorador de vitrines e de não poucos carnavais de rua e clubes e festas de agosto - catopês, animador cultural, instrumentista (gaitas de todos os tipos, teclados, guitarra e violão), luthier, afinador de piano (possuía o raríssimo dom do “ouvido absoluto”), arranjador e compositor de alguns jingles e canções, cantor (sublimes back-vocals), folclorista (co-fundador do grupo Banzé) e, por influência dos Beatles e Rolling Stones, integrante (guitarra e vocais) da primeira banda (na época chamava-se “conjunto”) de rock de Montes Claros, Os Brucutus.
Paralelamente a toda essa atividade, criou e pintou placas, faixas, cartazes promocionais e camisetas, concebeu out-doors, banners, rótulos para vários produtos e bottons e o que mais se fizesse necessário ao seu desempenho como publicitário. Autodidata, tornou-se desenhista e animador gráfico de grande sensibilidade após varar noites diante do computador. Dominou a máquina.
Esse foi o Patão técnico, profissional. Escritos outros certamente ampliarão o tema e abordarão as demais facetas e os inumeráveis matizes dessa curiosa figura humana. Hoje, aqui neste espaço, daremos apenas uma amostra do lúdico, irreverente e pueril que a compuseram, ao tornar público os percalços do seu matrimônio.
Numa madrugada de um dia qualquer nos idos de 1993 estávamos, Pato e eu, aboletados em uma daquelas mesas do querido e saudoso bar e restaurante Papai, ali no final da Padre Augusto com Afonso Pena. (en passant): algum tempo depois, a segunda demolição desse templo da boemia - que já ocupara o ponto defronte quando da primeira - decretaria o fim da vida noturna na área central de Montes Claros. Um crime! O abrigo da fina flor da nossa intelectualidade deu lugar a uma garagem de automóveis... Em nome do progresso... Indigne-se, prezado leitor!). Calados há algum tempo, pois entre velhos amigos muitas vezes bastam um gesto ou um olhar para o que pensamos seja expresso, eis que ele, de chofre, revelou-me:
- Cabaret, sabe aquele meu casamento com a Rosana?... Tudo não passou de um embuste, uma farsa!
Fiquei apoplético. Fora padrinho do casal, imaginava que se desse bem...
- Vamos tomar mais uma que lhe conto tudo - acrescentou ele.
E comandou ao garçom:
- Bill, uma cerva e duas Viriatinhas!
- Não vou de pinga, não, Pato - disse eu.
- Vai, sim, ou não lhe conto nada!
- Então anda, desembucha! - cobrei.
- Deixemos a bebida chegar - disse ele rindo à socapa, se sacudindo.
Bill veio, depositou a garrafa e os copos sobre a mesa e ficou por ali, dado que era a ouvir conversas alheias. Pato não titubeou:
- Desembaça, garoto, que o papo aqui é de família.
Acompanhando Bill se afastar por cima das lentes, tirou os óculos, voltou-se para mim, olhou-me nos olhos, e com o cenho ainda franzido iniciou o relato a seguir.
- Sabe aquele padre, o que fez o casamento?
Lembrei-me. Era um tipo bonitão, aparentando uns 35 anos, alto, forte, cabelos pretos, barba feita, perfumado... Paramentado em seda, tudo finamente bordado... Eu nunca vira um padre igual.
- Pois bem, aquele padre, na realidade, era um ator de uma agência de publicidade do Rio de Janeiro, contratado para fazer o papel de oficiante do casório.
- E o sacristão?
- Outro safado!
Relembrei os dois e o cenário do casório, impecável: toalha e paninhos de linho sobre um aparador improvisado em altar, velas e castiçais, a Bíblia numa estante ao lado, cálice dourado e hóstias (o padreco dera comunhão aos nubentes e a quem até o altar se adiantou)... E como falava bem, um verdadeiro ator... E a papelada que nós, padrinhos, assinamos? Tudo em perfeita ordem... Pato era um gênio, forçoso reconhecer.
Virei a pinga de um só trago.
- Agora, seu sem-vergonha, vai me contar tudo, tintim por tintim!
Acontecera o seguinte:
Ele havia construído um charmoso sobradinho nos fundos da casa da mãe e para lá se mudou. Queria maior privacidade e fazer das suas, longe do olhar inquisitorial de dona Júlia, minha querida e amada segunda mãe, porém, catolicíssima e intransigente ao extremo quando o assunto era sexo fora do casamento (ah, suas ex-empregadas domésticas que o digam...).
Bem, essa mudança do Pato dera-se muito tempo antes de ele resolver a se casar. Aliás, nem mesmo conhecia a futura mulher. Mas, quando se decidiu pelo passo fatal, sobreveio o impasse: dona Júlia jamais iria admitir que o casal ali se acasalasse e fornicasse, intramuros, em domínios seus, sem que a união de corpos fosse abençoada e sacramentada pela Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana. Jamais! Rosana, a noiva, era divorciada, impedida de recasar na Igreja. Imagino que, se porventura Julinha viesse a sonhar ou a saber desse fato, impediria até mesmo o namoro:
- Andando com mulher descasada, Hélio?!
- Como descobriu o padre? - perguntei.
- Foi Reginauro Silva quem arranjou tudo.
- Danado, esse Regi, mas, como foi mesmo?
- O padre era um ator de comerciais de uma agência prestadora de serviços à Globo. Reginauro o conheceu no Rio. O velhaco celebrava casamentos em todo o Brasil.
Estou me lembrando agora do almoço do domingo, dia seguinte ao casamento. Ao retornar da missa das oito na Catedral, Julinha ligou para o hotel do padre. Queria saber dele o prato predileto, pois resolvera homenageá-lo com um almoço em família antes que tomasse o avião de volta ao Rio. Atendeu-a o sacristão, visto que o galã ainda dormia - o que ela estranhou, porque imaginava que padre acordasse às cinco da matina, tomasse banho frio e passasse a ler o breviário, ainda em jejum -, e foi curto e seco:
- Acho que é bacalhau, dona Júlia.
Foi um corre-corre na casa. Onde encontrar bacalhau àquela hora de um domingo? Acordaram Beto, que, ressaqueado, resmungando, saiu de carro a atender às ordens da mãe:
- Traga-me esse bacalhau, mesmo que vá buscá-lo em Portugal! E não me volte sem um bom azeite e vinhos!
Nervoso - o nervo passageiro dos Guedes -, Beto ainda tentou ponderar:
- E o sal, e o sal, como a senhora vai dessalgar o bacalhau?
- Isso é comigo - disse ela. Muitas águas, batatas, leite, panela de pressão e uma oração e a Providência divina tudo resolverá.
Mas quem resolveu mesmo foi Beto e quem providenciou fui eu. Ele me acordou tão logo saiu de casa. Estava sem saber o que fazer. Bacalhau àquela hora, onde? Estava tudo fechado. Fui prático:
- Elementar, meu caro Watson, vamos ao Armando’s!
Liguei para Julinha e disse-lhe que teria o bacalhau, pronto, ao meio-dia. Encaminhamo-nos, Beto e eu, ao restaurante, onde encomendamos o prato, o azeite e os vinhos e ainda rebatemos a noitada da festa.
- Esses Guedes... - comentou Patão.
Mas deu tudo certo, velho. O almoço foi um sucesso. Você precisava ter visto: Beto adorou o padre. Disse-me:
- Isso é que é padre, jovem, aberto, sem grilos...
Até mesmo seu irmão Zeca, que tem birra do clero, simpatizou com o moço.
- É, esse meu casamento foi mesmo uma novela. Para mamãe aceitar o fato de que a cerimônia seria realizada na casa dos pais de Rosana, você é incapaz de imaginar a mão-de-obra que foi.
Queria porque queria a Catedral.
- O que fez para convencê-la?
- Disse-lhe que havíamos procurado e não encontrado horário em todas as paróquias da cidade, que em maio era assim mesmo etc e tal. Mas, quando achei que havia cedido, ela ameaçou recorrer ao bispo, seu grande amigo dom José! Aí seria o fim do sonho, desvelariam a trama. Já pensou se o bispo resolve celebrar, ele próprio, o casamento em palácio? Para a velha seria a glória, a manifestação divina de sua fé. Eu, meu caro, suava frio, mas com o argumento de que a casa de Rosana vinha sendo pintada para o evento e alguns detalhes mais, ela deu-se por vencida, mas, que luta!
- Quem bancou a produção da novela?
- Os pais da noiva, ora bolas! Acho que o cachê do padre foi algo em torno de 8 mil reais.
- Ah, quando Julinha souber disso...
- Se contar a ela eu lhe mato! Cabaret, Cabaret, olha lá, hein? Vai perder um amigo...
- O tempo tudo cura, Hélio, o episódio já vai para três anos...
- Para mamãe o tempo não passa!
Esperei um ano. Uma bela tarde, sentados Julinha e eu no alpendre de sua casa, a esticar prosa como amiúde fazíamos (ela sempre exortando-me a freqüentar a Igreja), não resisti ao segredo. Contei-lhe tudo. Sua reação? Riu à bandeiras despregadas, porém raciocinava nas gargalhadas, pois logo retomou o ar sóbrio e me indagou:
- Quer dizer que o casamento não valeu?
- Não, Julinha, pelo Direito Canônico o casamento é nulo! - sentenciei.
- Deus é grande e é pai! Escreve certo por linhas tortas. Hélio ainda haverá de se casar na Catedral! - rejubilou-se minha amiga.
NOTA: Escrevi essas mal traçadas linhas logo após as exéquias de meu amigo Patão, em 03.07.2008 (ele nasceu em 26.01.1948). Deixei para publicá-las agora receoso de que a Igreja pudesse lhe negar a missa de sétimo dia. Explico-me: em tempos de Bento XVI, a revelação de uma heresia de tamanha magnitude poderia não passar despercebida...