Nas mãos de quem nasci

Jornal O Norte
Publicado em 20/07/2010 às 10:33.Atualizado em 15/11/2021 às 06:33.

Alberto Sena


Jornalista



Foi o texto de Mara Narciso, intitulado Praça Irmã Beata, baseado nos depoimentos de Ruth Tupinambá, Maria de Jesus Felícia Mota e Maria Eunice Leite, sobre Wilhelmina Lauwen, conhecida como Irmã Maria Beatrix, e muito mais como Irmã Beata, que me proporcionou sensação tal e qual, senão a uma regressão ao útero materno, pelo menos, ao dia do meu nascimento. Nas mãos de quem? Dela, Irmã Beata.



Posso dizer, sem exagero: assisti ao meu próprio parto. Assisti claro, modo de dizer. Assisti com os olhos de mãe e os detalhes contados por ela. Não os detalhes do parto em si, mas do pós-parto. Do que aconteceu em seguida.



O resto do que se passou naquele dia ficou por conta da minha imaginação. Até hoje, volta e meia, falo com as pessoas, quando tenho a oportunidade, como a tenho agora: ‘nasci em mãos santas’.



Se Montes Claros tem alguém candidata a ‘santa’, o nome dela é Irmã Beata, holandesa de nascimento. Talvez esse fato somado à religiosidade de mãe me tenha tornado crente em Deus.



A pessoa pode ser considerada a mais sábia do mundo, mas se porventura confessar não crer em Deus, essa pessoa não existe. E não vai aqui nenhum sentimento de menosprezo. Pelo contrário, uma pessoa que nega a existência de quem a criou merece piedade. Se não crê em Deus, o Criador, como crer na criatura sábia, cuja sapiência a cegou?



Mas não basta crer em Deus. É preciso sentir Deus em si (sentir e não se sentir Deus). Ele é Ser tão grande que nenhum vivente tem olhos para enxergá-lo no todo. Deus a gente O vê nos detalhes. Nos montes claros, nas florestas do Cerrado, nos animais quadrúpedes e nos pássaros. Na grandeza do mar e em tudo que o povoa. Ele é visto nos rios. E, principalmente, nos seres humanos.



Como disse parágrafos atrás, ao ler o texto ‘Praça Irmã Beata’ tive uma experiência de regressão ao dia do meu nascimento. Mãe que me contou: quando nasci, a caridosa freira pegou-me nos braços e disse – preciso reforçar: estou sendo fiel ao que mãe me contou: ‘quê menino bonito, dona Elvira; dá ele pra mim’? E ficou comigo nos braços, ninando. Ela foi insistente, contou-me, mãe.



Claro, dona Elvira ficou lisonjeada. Eu mais ainda, embora na ocasião não pudesse manifestar nada neste sentido a não ser aos ‘berros’.



Essa brincadeira de Irmã Beata com mãe pode ter sido demonstração do quanto era ela sensível, e psicologicamente, sabia lidar com as parturientes. Ela devia falar a mesma coisa a todas as mães.



Mas foi importante saber disso e retornar ao dia do meu nascimento. Poder imaginar as mãos da Irmã Beata me segurando, como se abarcasse uma ‘trouxinha’ envolta em panos. Gostoso sentir o calor do colo dela, alma virgem, e tentar ouvir-lhe as batidas do coração.



Um dia perguntei a mãe se ela teria coragem de me dar em adoção à Irmã Beata. Sabem o que mãe disse? ‘Claro que não’! Ainda bem. Pensei. Não ia gostar de viver com ela, ali dentro da Santa Casa, naquele silêncio quase sepulcral, onde não se podia brincar nem fazer barulho.



Bom mesmo era ser filho de dona Elvira e brincar livre no quintal, debaixo dos pés de jabuticaba ou à sombra das mangueiras e praticar pontaria com pedradas de estilingue nos vidrinhos de penicilina.



À medida que as minhas irmãs se casavam e iam tendo filhos – primeiro Elza, casada com o já falecido Raimundo Lopes; depois Terezinha (Tê), casada com Nelson Murça, hoje com 84 anos – era hora de ir à Santa Casa ver a carinha dos sobrinhos recém-nascidos.



Era bom ir à Santa Casa só para subir a rampa até o apartamento onde o sobrinho recém-nascido dormia. Era gostoso ouvir o silêncio dentro do hospital. No apartamento só se podia falar baixo.



Mas embora achasse importante ter nascido nas mãos dela, eu continuava renitente: ‘minha mãe fez o mais certo, não me entregou à Irmã Beata’. Fisicamente, não. Mas espiritualmente, em Deus, na pessoa de Jesus Cristo, sempre estive com ela, dentro ou fora da Santa Casa.



Para mim, hoje, ao volver ao dia do meu nascimento, acredito: Irmã Beata ‘era santa’. Não por mérito dela própria, mas por conta de Jesus Cristo no seu coração. Ninguém é santo se não estiver em Deus.



Vamos refletir: quem é capaz de controlar a fome, a sede, os pensamentos, a respiração, as necessidades fisiológicas, as batidas do coração? Quem sabe o que vai me acontecer, a mim ou a você, no próximo minuto?



Fisicamente somos, em verdade, poeira cósmica. Não há porque nos acharmos uns superiores aos outros. Vamos todos virar pó.  Importa, sim, cuidar do espírito.



Enquanto ainda há tempo.

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