Felippe Prates
Aliás, pelo artigo 120
No nosso salão
É proibido o seguinte:
Dançar de pé no chão
Abusar da umbigada,
De maneira folgazã,
Prejudicando hoje, moçada,
O bom crioulo de amanhã...
São alguns versos do antológico e notável samba “Estatutos da Nossa Gafieira”, do inspirado compositor carioca Adelino Moreira.
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Comete grande engano quem julga que gafieira é lugar de malandros barra pesada, onde não há respeito e se dança na base do roça-roça. Muito pelo contrário, os fiscais de salão, empregados da casa, mulatos parrudos arregimentados nas academias de luta livre, muito bem vestidos, são rigorosos no zelo da moral e da boa disciplina do ambiente, não permitindo que este se deteriore e chamam a atenção, energicamente, dos que saem da linha, até expulsando-os da gafieira. Nem samba puladinho é permitido.
Fizemos o curso de Direito na UEG, antiga Universidade do Estado da Guanabara, hoje UFRJ, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Excelentes professores como Afonso Arinos de Melo Franco, Aliomar Baleeiro e muitos outros de igual nível, compunham o seu afamado corpo docente. A sede se situava na rua do Catete, pertinho do Largo do Machado e do Grêmio Cultural e Recreativo Gafieira Flor do Abacate, a melhor delas.
Numa época em que a vida na Vale do Rio Doce andava apertada, estudávamos à noite e, freqüentemente, nas sextas-feiras, após as aulas, acompanhados de um grupo de colegas, moças e rapazes como nós, íamos dançar na Flor do Abacate. Era um programão! Muito prestigiada e afamada, a casa, generosamente bem instalada, ocupava largo espaço, tinha orquestra própria, que acompanhava, ao vivo, os grandes cantores da época, cozinha barata e de primeira, bebidas variadas com destaque para a bem gelada cerveja casco escuro, a preferida dos jovens.
A gafieira funcionava das 10 da noite às 6 da manhã. Na entrada, sob a vigilância de seguranças, ingressos com mesas eram vendidos somente para cavalheiros com traje passeio completo, acompanhados de damas finamente vestidas com roupas de festa. Mulheres desacompanhadas, não entravam. Lá, autêntica atração turística, convivíamos democraticamente com pessoas de todos os níveis, das mais diversas procedências, num ambiente seguro, descontraído e extremamente agradável. No clima romântico da gafieira, com dezenas de pares rodopiando no salão, nos divertiamos a valer, a um custo baixo que cabia no nosso orçamento, pois muitos estudantes viviam de mesada.
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Sem o menor problema, ou sequer algum momento menos agradável, tinhamos a madrugada como companheira.
Certa noite, lá estávamos bem instalados em mesa de pista, numa boa, quando nos surpreendemos com a chegada de três mulatas abafantes, absolutamente lindas, acompanhadas de um rapaz. Uma delas se sobressaia e com seus l8, 20 anos, mais parecia uma deusa! De uma beleza estonteante!
Na gafieira é proibido “dar tábua”, ou seja, não aceitar o convite para dançar com alguém, pois todos os freqüentadores, sem exceção, ali vão para dançar. A não ser por embriaguez ou outro motivo especial é permitida a recusa, a critério e com o aval de um fiscal de salão.
Naturalmente nos empolgamos com a chegada daquelas originárias do Olimpo e os mais tímidos nos desafiaram:
- Ô Felippe ! Você, com essa fama de desinibido, topa apostar 50 pratas como não tem coragem de tirar aquela perfeição ali ó... para dançar!?
- É conosco, mesmo! Tem mais alguém que deseja apostar? Pagamos 2 por 1, ou seja, quem ganhar leva 100 “pratas”! Felippinho precisa faturar a “grana” dos incautos...
Tínhamos recebido o salário naquele dia, estávamos forrados e valentes, a oferta despertou a cobiça e todos apostaram, como queríamos. Dinheiro casado, quase 500 “pratas” na mão do garçom, o velho e confiável amigo Hélio, escolhido para depositário da “granolina”. Com palpitações, seguindo a tradição e a boa regra da gafieira, antes ajeitamos o terno, abotoamos todos os botões do paletó, arrumamos a gravata e, muito civilizados, nos dirigimos ao acompanhante de Perfeição e suas amigas, dizendo-lhe:
- Boa noite! Com sua permissão, cavalheiro, podemos convidar uma das senhoritas ao seu lado para dançar?
- Pois, não! Permissão concedida.
Quase sem fala de tanta emoção, murmuramos olhando para a deusa:
- Quer dançar comigo?
- Sim, é de gosto!
Graças a Deus estava tocando um bolero, música lenta, fácil de dançar e lá fomos nós, dois pra cá, dois pra lá, coração a mil, aposta ganha, sob os olhares e os suspiros da incrédula galera, agora “dura”, bebendo água mineral...
No Rio, escureceu é mulata. Da morena jambo à mulata “azul”de tão retinta, o Adelino que nos perdoe, mas sempre mulatas, nunca uma negra, preta, ou crioula, termos que ofendem, pois são considerados pejorativos. A não ser ao pé do ouvido, na cama. As melhores briquitadas de nossa vida aconteceram graças ao inigualável talento e a hábil cumplicidade de inesquecíveis mulatas! Com namoro, claro. Quen-tes...
Mulatíssima infernal, cheirosa, mãos macias, porte elegante, dançando tão bem que flutuava na pista, gente, nós estávamos num pedaço do céu! Possuídos de uma coragem que nunca tivemos, arriscando errar a contagem dos passos, puxamos conversa com Perfeição:
- Como você se chama?
- Adivinha! Começa com “O”, olha o bordado da blusa...
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Tinha mesmo um “O”, em letra gótica, no bolsinho da sua blusa. Tentamos descobrir:
- Otília!
- Não.
- Olívia!
- Não.
- Agora, vamos acertar! Odete!
- Nãozinho...Que nome feio...
Esgotamos o nosso estoque de nomes iniciados pela letra “O” e não acertamos. Perfeição ria muito, boca linda, apetitosa, emoldurada pelos dentes mais perfeitos que já vimos, puro marfim, arfando os pequenos belíssimos e pouco vislumbrados seios, duas esculturas, deixando-nos imbecilizados, imaginando coisas deste mundo e do outro, meio tontos, simplesmente eletrizados com tanta beleza, desejando mesmo que a orquestra jamais parasse de tocar, eternas músicas, como eterna seria, se tivéssemos ao menos uma chance, a paixão, alimento da nossa servidão, escravizados, beijando, de joelhos, os seus maravilhosos pés, padecendo completamente sob seus poderes pelo resto da vida!...
Devaneávamos, imersos nesses pensamentos gloriosos e Perfeição nos perguntou:
- Desiste, “doutorzinho” Felippe?...
“Doutorzinho”, que lindo!... Vencidos, mas em êxtase, sussurramos:
- Sim, nós desistimos só da adivinhação. Diga, qual é o seu nome?
- Orora.
Falem-nos: felippeprates@ig.com.br