Maria de Jesus, a ginecologista de Moc, fala sobre o universo feminino

Jornal O Norte
Publicado em 13/04/2009 às 11:01.Atualizado em 15/11/2021 às 06:56.

Mara Narciso


Repórter



Numa época em que as mulheres, especialmente as de pequenas localidades, mal iam à escola, Maria de Jesus Santos Rametta saiu de Miralta, distrito de Montes Claros, e foi estudar inicialmente na sede do município e depois em Juiz de Fora e Belo Horizonte. Graduou-se em medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais em janeiro de1963.



Naquele tempo não havia residência médica; assim, a jovem Maria de Jesus acompanhou o serviço de seus professores no Hospital das Clínicas de Belo Horizonte e no Hospital e Maternidade Odete Valadares, também na capital.



Em outubro de 1963, como primeira mulher médica em Montes Claros, a Maria de Jesus atendeu a nove consultas no seu primeiro dia de trabalho. A curiosidade era tão grande que o consultório ficava cheio. As mulheres tinham muitas dúvidas sobre a saúde feminina e medo em relação a serem operadas por uma mulher. Não havia a concepção do serviço médico durante o parto. Quem atendia na Santa Casa eram as irmãs de caridade. Os médicos Aroldo Tourinho e Konstantin Cristoff só eram chamados quando a coisa complicava...



Maria de Jesus introduziu vários novos conceitos, como o médico fazer o parto e o exame de prevenção do câncer ginecológico - a citologia ou Papanicolau, tornando-se a sétima pessoa em Minas Gerais que mais solicitava esse exame. O material era mandado via correios para um laboratório de Anatomia Patológica em Belo Horizonte. Posteriormente veio a prevenção do câncer de mama.



Raramente os maridos pediam para assistir ao exame médico e, uma vez, um deles desmaiou ao ver a esposa grávida sendo examinada. A idéia de pré-natal mensal também foi orientação de  Maria de Jesus. No começo, as mulheres viam nessa indicação apenas um interesse comercial, mas com o tempo notaram que havia perigos à espreita como, por exemplo, a pré- eclâmpsia, o diabetes e hemorragias.



As mulheres convenceram-se da necessidade da presença do médico no parto, mas as freiras viam essa novidade com desconfiança. No começo havia muita preocupação e medo do parto fórceps (manobras com “ferros” para a retirada da criança).



A justificativa para as poucas cirurgias, segundo Maria de Jesus, era que “a precariedade da desinfecção hospitalar levava a um grande risco de infecção cirúrgica, daí serem raras as cesarianas (corte vertical na época)”.



Com a eficácia da esterilização e o corte abdominal transversal, além da comodidade de tempo - um trabalho de parto podia demorar mais de dois dias -, lentamente começou a filosofia da cesariana, que antes só era feita com indicação formal. A cirurgia de períneo e a preocupação estética com as mamas e aparência do abdômen no pós-parto aconteceram bem depois.



A amamentação ao seio teve um intervalo, quando a indústria alimentícia vendeu a imagem de que o leite humano era fraco e amamentar levava à queda dos seios. Hoje a amamentação é uma obrigação bem aceita pelas mulheres, constata.



Montes Claros centralizava o atendimento das mulheres de Sete Lagoas a Vitória da Conquista, assim era de praxe as pessoas alugarem uma Kombi e virem consultar aqui com Maria de Jesus. As opções de medicamentos eram poucas, e assim, não era raro acontecer uma mesma receita para várias mulheres numa condução, o que gerava certo constrangimento.



Como todos desconfiam, o consultório médico é um verdadeiro confessionário. Maria de Jesus recorda-se de uma época em que “eram comuns os homens terem esposas e amantes, convivendo à distância e quase se encontrando, e uma vez entrou a esposa, e na próxima consulta entrou a outra, sendo que o marido pagou as duas contas”. E completa: “esse tipo de comportamento, impensável nos dias de hoje, era aceito com certa benevolência”..



As esposas, de um modo geral, eram muito recatadas, e discretas, mas aceitavam normalmente o exame local. Apenas as que tinham problemas de ordem sexual sentiam dores ao ser examinadas. Quando há medo do exame, explica claramente como será o procedimento, especialmente para as crianças e moças jovens. E diz que: “vendo o respeito que tenho pela pessoa humana, e a segurança que ofereço, elas perdem o receio e aceitam”.



“No começo havia a história da virgindade. Quando, após o casamento, surgia a dúvida, as mulheres eram trazidas pela família, principalmente do marido, para saber se a ruptura do hímen era recente ou antiga”. E completa: “Tinha raiva desse comportamento, mas com o tempo vi que a necessidade de casar virgem foi diminuindo”.  E diz: “Ainda hoje, embora seja mais raro, há quem ache importante ser virgem para se casar”, diz a médica. “A virgindade é vista por alguns como um valor, já que a mãe quer e a religião também tem essa vontade. Então trazem a noiva e muitas vezes caem no ridículo”. Teve também um período em que as moças passaram a fugir com os namorados e as famílias as traziam para o exame, para saber o que tinha acontecido.



O comportamento sexual continua mudando, e a ginecologista pôde verificar isso de forma ampla, porque centralizava todo o movimento, como a única especialista da cidade durante mais de doze anos.



“As mulheres de quarenta anos atrás eram felizes dentro das suas limitações. Hoje, com a independência financeira, são mais felizes e realizadas num universo bem maior”, confirma o senso comum a Maria de Jesus. Não há limites para a mulher, e a segurança feminina é vista por ela como uma característica muito positiva. Do ponto de vista da sexualidade, as mulheres se realizam melhor agora, porque, devido à informação, quando há um problema, buscam soluções na medicina.



Na menopausa, diante de uma queixa qualquer, as mulheres são tratadas, e continuam a ter vida sexual, o que não acontecia anteriormente. “Hoje há mulheres com mais de oitenta anos em atividade sexual, pouco frequente, é verdade, mas satisfatória”, nos surpreende a doutora.



Os homens, algumas vezes de forma secreta, usam remédios anti-impotência, mudam o comportamento com as suas mulheres, mas elas logo descobrem devido às embalagens dos produtos.



A maternidade é mais responsável. A mulher, até por trabalhar fora, necessita ter poucos filhos, assim 80% usam algum método anticoncepcional e só engravidam quando querem.



Aos 42 anos Maria de Jesus foi mãe pela primeira vez, depois de um aborto também tardio. Credita esse fato a um milagre, pois, depois de tantas tentativas não tinha mais esperanças. A maternidade mudou tudo, a rejuvenesceu e a fez dedicar-se mais ao filho, reduzindo o tempo no trabalho. Sérgio, hoje com 32 anos, é médico, terminando a residência em urologia. Antes, esteve a ponto de se formar em engenharia. O marido de Maria de Jesus é o também ginecologista e obstetra José Rametta.



E Maria de Jesus finaliza: “Estou lendo um livro em que um professor nos ensina como conversar com o paciente. É preciso tratar gente como gente. Errei algumas vezes, mas sempre procurei melhorar. A gente tem de fazer tudo com amor”.

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