Adilson Cardoso
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Paulo Flores me falava com voz cansada enquanto lia no meu boné o nome do disco da banda Motor Head: march or die. Nas suas últimas palavras por aqui me confessou lucidez e uma expectativa de chegar ao outro lado. Espírita convicto, tinha em mente uma estadia eterna diferenciada dos outros mortais. Astir falava com vigor de planos para muito tempo longe deste dia que foi seu último plantão como técnica em enfermagem.
Seu pequeno Sami era o motivo de tanta luta e planejamento, numa estrada de horizonte límpido, sob as esverdeadas serras mineiras. Uma colisão com outro veículo deixou seu corpo esmagado entre ferragens e pedaços de companheiros que sonhavam com o mesmo gozo no último passeio.
Almerindo não queria nada mais naquele momento senão abraçar sua mãe, que se deprimia de saudade. Já se passavam muitos dias desde sua última visita do novo emprego em Brasília, naquela fatídica manhã já podia avistar Montes Claros. Sonhada na curva da Ponte Branca, de acesso a Pirapora. Casas miúdas e um sorriso no peito, que foi interrompido com o estrondo que decepou diversas cabeças.
Sangue e dor nos últimos gritos, que não se pode medir ou refazer as vontades individualizadas que se mantêm no segredo daqueles instantes finais. Dadá corria pela Magalhães Pinto, cumprindo seu ofício de entregador de pizza. Havia beijado Meire, que desposara há poucos meses. Dizia que queria ser pai o mais breve possível, mas foi um segundo fatal que substituiu tudo aquilo que queria por um monte de coágulos de sangue espalhados no chão oriundo da sua cabeça.
Queria ter amado mais, ter arriscado mais... mas risco era o que corria Júlio abóbora janaubense de peito aberto e exímio contador de piadas. Dizia sempre a sua mãe que São Paulo iria dar-lhe condições de resolver sua vida, comprar carro e reformar a casinha que conservava o negrume nos cantos da parede da época da lamparina a querosene. Júlio pintava prédios e se sentia pássaro balançando numa corda que pensava ser seu porto seguro. Teria que ser no sábado o dia que considerava o mais bonito de todos. Suas curtições já estavam costuradas e o vale no final da tarde lhe daria direito de conhecer os pais de Lucinete, que morava em Diadema.
Quem arrisca contar os últimos momentos aumenta na versão que jamais será confirmada. A verdade é que o corpo de Júlio foi recolhido pelo resgate com múltiplas fraturas e uma morte cerebral já decretada pelo paramédico, após o cabo de aço se soltar da manete protetora.
Marinalva escrevia poemas desde os dez anos de idade, seus olhos cor de mel brilhavam e todos se encantavam com a declamação do navio negreiro de Castro Alves. Ela crescia e seu talento aumentava. A poesia era o almoço e o jantar, o café da manhã com cheiro de rima. Era uma socialista ferrenha e uma alma de humanidade ímpar. Seus dezesseis anos, como relembra a avó Jesuína na comemoração, parecia uma reunião de subversivos em época de chumbo patrocinada por Médici. Marinalva viveu até os dezenove, como passou a reclamar de solidão e da tristeza que não sabia de onde vinha. Tomava bebida alcoólica e não escondia que fumava um cigarro de maconha para ouvir Janis Joplin.
Numa quinta-feira, dia doze de outubro, onde as crianças se deliciam nas guloseimas e são lembradas como são, a poeta filha de Pacifico e Malvina toma ácido muriático e agoniza no seu quarto até a morte.
O jornal Hoje em Dia deu pouca importância ao caso e reduziu a moça magra de cabelos encaracolados e poesia nos lábios a poucas linhas suicidas. Dia dois de novembro eles são lembrados, por cima dos seus túmulos são depositadas flores de todas as cores. Visitantes choram copiosamente e abraçam o vazio que se amplia sem medida, como disse Shakespeare: Além dos céus e a terra existem mais mistérios do que possa prever nossa vã filosofia.
E a todos esses que por aqui passaram enviamos saudações e notícias como a canção do Chico: Aqui na terra andam jogando futebol, tem muito samba muito frevo e rock in roll, mas é o que eu quero dizer é que a coisa aqui tá preta...