Leitura sem censura: Metamorfoses e rótulos - por Adilson Cardoso

Jornal O Norte
Publicado em 16/09/2008 às 09:34.Atualizado em 15/11/2021 às 07:44.

Adilson Cardoso


adilson.airon@mail.com



Ando bastante preocupado com esta existência. A todo instante algo me aparece para amputar meu prazer. Quero seguir as dicas da cantiga do Lobão - Viver dez anos a mil que mil anos a dez. Porém algumas coisas estão me deprimindo. Olhares mórbidos me ceifam a todo segundo, tudo faz mal! Para os médicos, dificilmente estaremos sadios por tanta estripulia que praticamos. Vai consultar de gripe, suspeita-se de sinusite; escarrou sangue, pode ser tuberculose; está emagrecendo, deve ser aids; engordou demais; está obeso; raspou a cabeça; está fazendo quimioterapia; deixou o cabelo crescer, está querendo imitar artista; furou as orelhas, está virando gay; se estuda muito, vai ficar louco; se não estuda nada, é burro.



O churrasquinho que gosto é com gordura e mal passado, dizem que tem que ser bem passado para evitar a cisticercose e a toxoplasmose; que a gordura entope os vasos sanguíneos e faz mal para o coração. A pinga me dá sensação de poder, como guia para a cerveja de final de semana, mas vem gente falar que dá cirrose e hepatite. Mais gastrite e ainda hematomas pela queda, se exagerar nas doses, e que vodka tranca os rins. Se eu parar de beber e sair por aí pregando um novo mundo longe das coisas pecaminosas, logo me trancarão numa cela forte de algum hospital psiquiátrico ou me acusarão de terrorista lunático e o exército, com certeza, fará suas campanhas para me aniquilar, como fizeram com Antônio Conselheiro.



Se sair por aí levantando a bandeira dos mais pobres me chamarão de candidato pára-quedista. Se defendo os sem terra, me prendem por apologia ao crime e nunca mais me soltam. Defender a minha raça negra é complicado, pois meus irmãos aboliram o direito de ser autênticos para serem afro-descendentes.



Se começo a fazer amizade com quem usa drogas, serei maconheiro. Se preferir amizade com a polícia, sou um X 9 ou alcaguete. Se defendo minha empresa, sou puxa-saco. Se faço greve, sou traidor do patrão.



Vou ficar deitado um tempo pensando no que posso fazer neste mundo controverso, mas dizem  que quem  fica deitado sem estar doente é preguiçoso e, se perder meu emprego, serei demitido e me chamarão de desempregado. Acho melhor pensar em outra maneira que resolva meu conflito, que não tenha que morrer para não me chamarem de defunto, como lembrou Veríssimo. Desaparecer como mágica teria que ser para algum lugar. Agora posso tentar uma metamorfose humana feito a alucinação de Raul, sendo tudo ao mesmo tempo, sonhando e vivendo a realidade, como se a vida se tornasse um imenso palco onde atores e platéia fizessem o mesmo papel, se revezando naquilo que se encontrarem mais próximos, saudando a alegria do espetáculo que nunca se acaba. Assim, na metamorfose consciente, as dores se interagiriam como as lágrimas e os sorrisos, e todos os atos brincando na verossímil representatividade, deixariam bem claro que somos todos crias da mesma massa, modelados pelas mãos da natureza, com direito eterno de nos transformarmos.

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