Logotipo O Norte
Domingo,8 de Junho

Leitura sem censura: Incesto e morte

Jornal O Norte
Publicado em 26/11/2008 às 15:59.Atualizado em 15/11/2021 às 07:51.

Adilson Cardoso


 


Uma macabra intenção povoa a cabeça, pássaros voam no escuro, temendo pelo que se esconde atrás das sombras. Um gemido vaza o oco do nada e o palpitar do coração aumenta a sudorese fria. Atrás da porta, a enxada que foi usada no enterro da irmã com um segredo ainda não  revelado.



A lua minguante enganchada no céu não permite que a luz se expanda e os treieros onde a moça passou a última vez com o pote de água da cacimba conserva a lembrança que não consegue se libertar do pensamento. Ele está paralisado com as imagens brutais da cena derradeira, e os gritos ensurdecedores da amada que queria para si, com todas as forças do seu desejo, ainda que essa mulher fosse a filha mais jovem dos pais dele.



Lara fizera opção de ficar com os pais no bucólico lugarejo de São Domingos, a poucos quilômetros de Capitão Enéas. As irmãs Maria de Fátima e Eva vieram para Montes Claros para completar os estudos iniciados na antiga Burarama. Sílvio, o irmão mais velho, contraiu matrimônio com a filha de Chico Pança, lá do Brejo das Almas, e foi morar em São Paulo. Beto ficara por ali mesmo, por comodismo, ao contrário de Lara, que queria cuidar dos pais.



Não tinha muitos sonhos de crescer intelecto ou financeiramente. Porém, sua fama de domador de burro bravo lhe rendia alguns trocados para o sustento de seu vício no baralho, que era jogado todas as noites na venda de Cleber, marido da professora Fernanda, atleticano convicto que vendera há alguns anos a vaca de estimação e de leite para pagar uma promessa se o time alvinegro conseguisse sair da segunda divisão. Com sorte sobrou um troco da promessa e Cleber tatuou um escudo do time no braço.



Mas esse mar de nenhum acontecimento importante viria sair da sua rotina em breve, no dia 10 de dezembro de 2007. Um plantão do Jornal Nacional no meio da tarde chocou os moradores ali de São Domingos, e infelizmente acabaria com toda a felicidade de Lara. A notícia de que foi decretada situação de emergência no Distrito de Caraíbas, zona rural de Itacambira, onde um terremoto acabara de matar uma menina de cinco anos. Seus avós e mais uma centena de pessoas estavam feridas e desabrigadas. O tremor foi de 4,9 graus na escala Richter, conforme notícia dada em primeira mão pelo blog A Província.



"Destino inconseqüente e traiçoeiro sempre com suas leis, que não respeitam momento algum, cobram a sua hora como se nós humanos nos déssemos o prazer de resguardar a nossa hora, de fazer conforme nossa vontade".



O repórter Alécio Cunha, do Hoje em Dia, escreveu este trecho dentro da sua crônica do destino, este que não poupou dona Senhorinha e seu Anisteu, que há tempos sonhavam em visitar alguns parentes na região de Caraíbas. Conseguiram juntar a aposentadoria e de lá só conseguiram voltar com os corpos esmagados para dormir eternamente no pequeno cemitério do Sapé.



Após o acontecido, a tristeza se abateu sobre o lugar e o verde da relva que circundava o rio secou e as águas foram desaparecendo. O gado morria amuado na cerca e os urubus já faziam ninhos nas árvores que se sustentaram em pé. Moradores que podiam, fugiam para localidades vizinhas e até para São João da Ponte.



Lara insistia naquele velório permanente para cuidar do irmão, que não domava mais burros nem jogava baralhos. Perambulava embriagado, chorando a morte dos pais. Lara carinhosamente cuidava de Beto. Mesmo sofrendo a mesma dor, era a baluarte. Nas noites de profundas lembranças os dois dormiam agarradinhos, ela abraçando o irmão e ele sedento pela mulher começa então a criar situações vexatórias de ciúme explícito que a ingenuidade dela entendia como normal.



A missa dos domingos Lara já não freqüentava, tampouco ia comprar mantimentos pegando carona com Darley, o mototaxista que fazia suas viagens para Caçarema e adjacências. As discussões se tornaram freqüentes e as ameaças de Beto também. No dia 13 de junho, os dois prepararam uma bonita fogueira para continuar a tradição de celebrar o dia de Santo Antônio.



O cair tristonho daquela tarde na encosta da Serra e a saudade dos pais desprenderam as lágrimas presas nos olhos de Lara, que de pé fitava as cores quentes se misturando ao frio da estação. Beto abraçou-a lentamente e a beijou com beijo de paixão. Lara se arrepiou e sentiu que um calor diferente tomava conta do seu corpo. Não teve coragem de prosseguir, mas também não pediu para parar.



O frio soprou um vento cantante nos ouvidos incestuosos que se engoliam de tesão. O tempo parou... voltando a contar o relógio quando a fogueira do santo casamenteiro era apenas um braseiro


alaranjado simbolizando um fogo que se acaba após a queima da energia. A falta que faziam os pais e a solidão ora vista por ali não afastaram alguns amigos que conservavam o mesmo hábito da visita matinal do dia 14, para comer o assado no borralho que, segundo os causos, dá sorte para quem precisa arranjar namorada ou o contrário. Um desses amigos que foram descritos no processo foi involuntariamente o pivô da tragédia: Luciano, que consta ser irmão de Tan, chegou com sua pose de galã e o chapelão de faroeste, montado em cavalo cinza com aparência do Rocinante de Dom Quixote, momento em que Lara varria a cinza que o vento soprou do borralho.



O chegante desde a época de vida dos pais  chamava-a de namorada e a elogiava pela sua beleza natural. Lara sorriu acanhada como sempre e quase desfalece quando a figura possessa de Beto surge na soleira da porta, em direção à cacimba. Lara sai a passos largos, temendo que o pior acontecesse. Os urubus que ficavam na espreita da carniça do gado assistiram à decapitação de Luciano com o machado que o velho Anisteu usava em seus tempos de lenhador. Assim também foi o mesmo fim de Lara naquele treieiro que recebeu o sangue ingênuo da moça mais linda que aquela região já pariu.



Essa foi a noite que se encerrou com o corpo de Beto dependurado nas carcaças do velho cajueiro, com uma corda no pescoço balançando com a ventania resfriada e o orvalho do céu negro que cai feito lágrima nesta terra amaldiçoada.

Compartilhar
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por