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Segunda-Feira,9 de Junho

Leitura sem censura: Desabafo

Jornal O Norte
Publicado em 08/12/2008 às 17:51.Atualizado em 15/11/2021 às 07:52.

Adilson Cardoso


adilson.airon@mail.com



Em 16 de julho de 1984, com minhas letras feito garatujas pelo pouco tempo de escolaridade que tinha, deixávamos sobre a mesa de fórmica marrom uma carta ditada pela minha mãe, avisando ao meu pai que estávamos indo embora. Nas linhas sem pontuação e exorbitadas, dizia ela que havia se cansado de apanhar e que queria viver. Por isto estava saindo daquela forma. Pouco abaixo continuava relembrando o último sábado em que apanhou no rosto, por ter gastado um troco comprando arroz. Dizia ainda que estava levando apenas os filhos, que não queriam ficar com ele (meu pai).



Saímos quando o trem ainda lotava as plataformas de felizes viajantes por esses sertões de Gorutuba a Monte Azul. Minha mãe comigo e mais dois irmãos muito pequenos, em forma de escada, com as poucas peças de roupa dentro de sacos que ainda levavam farofa e café.



Meu pai já estava na Siom, na sua atividade de pintura de pequenas peças, quando o trem, arrastando os mais diversos passageiros rumo aos seus mais diversos destinos, passava lentamente sobre os trilhos que rasgam a Vila Ipiranga e o Alto São João, para decepar pouco à frente a Geraldo Athayde, indo prosa, soltando fumaça pelos matagais dos ainda não existentes bairros Tiradentes e Alcides Rabelo.



Eu e os irmãos que nada entendíamos de relacionamentos amorosos vítimas de incompatibilidades do lar, queríamos é fugir o mais rápido possível. Ir para tão longe onde nada pudesse nos alcançar em velocidade alguma. Víamos que existia uma ignorância excessiva por parte do meu pai, que às altas horas chegava dos botecos da vida espancando minha mãe. Era medonho e suscitava a ira, nos afastando dele pela lei natural de defesa da mãe.



Porém, não nos era dito que aquilo era briga de casal, que ainda que parecesse covardia, existia um motivo e que só os dois compartilhavam. Ninguém nos dizia que o filho precisa amar o pai, que a figura paterna é importante para a educação e o crescimento.



Ficamos em Pai Pedro, na roça amável que nunca saiu de dentro da memória, tantos anos depois da morte de minha avó e o êxodo provocado pela seca. Durante um mês ouvindo que meu pai não prestava e ingerindo aquele ódio como se fosse  água para saciar a sede.



Depois de completado esse tempo, de repente, em um domingo de marasmo caipira, chega meu pai como se fosse um monstro apocalíptico implantado em nossas cabeças, dizendo que iria nos levar de volta. Chorar, gritar para todos os santos, não adiantou, pois minha mãe sabia o que sentia e a falta que ele fazia, mas da nossa cabeça nada foi tirado. Meu pai continuava o mesmo monstro e, estrategicamente, minha mãe nada dizia. Voltamos e a vida seguiu com sua violência e nossos traumas, tendo minha mãe como vítima, e meu pai como o único culpado.



Assim, o tempo passa, a gente cresce e começa a entender os crimes cometidos pelas mães em nome de suas egolatrias e suas imensuráveis maneiras de manipular os filhos contra os pais. Sinto hoje, na pele, o que talvez meu eu tenha sentido, com a diferença de que sempre fui avesso à violência, usando o diálogo para resolver qualquer questão no âmbito do lar. Mas, infelizmente, as diferenças vão se acentuando, e um dia chega-se à conclusão de que desunião é o melhor caminho.



E nessa tragédia anunciada pela falta de entendimento, sobra o meu pequeno Airon Augusto, que é o termômetro de qualquer sentido em minha vida, vítima como fui um dia; é marionetizado pela mãe, que desrespeita o acordo legal e impõe a máxima da sua autoridade sobre ele, afastando-o de mim. Meu sofrimento se amplia nos espaços solitários em que ele corria e no silêncio que sua voz ocupava, chamando-me de Tatai.



Perdi a vontade de ver os jogos do campeonato brasileiro, pois não o tenho ao meu lado para comentar, do seu jeito, as jogadas de efeito e aquelas que ele chama de bola murcha. Acabou o campeonato, mas meu jogo de reconquista jamais irá ter fim, pois me apego na esperança e na lei natural do verdadeiro amor que sinto por ele.



Como eu acredito existirem milhões de pais convulsionados pela saudade e outros tantos filhos usados por essas criaturas que receberam o rótulo de divindade por força da luz do parto, mas que sem a menor consciência se escudam nos filhos para vingar suas decepções.

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