Lágrimas imperceptíveis

Jornal O Norte
Publicado em 08/04/2009 às 10:37.Atualizado em 15/11/2021 às 06:55.

Márcio Adriano Moraes


Professor de Literatura e Português


marcioadrianomroaes@yahoo.com.br


 


Os passos foram ouvidos na sala, enquanto estava deitado no quarto com as pálpebras cerradas. O sono vencendo como sempre, mas o sonho perdia a vez sempre que os passos pisavam com força. Permanecer deitado era impossível. Dos passos vieram vozes que começaram a gritar. Um breu intenso na casa toda. A cabeça se levanta e os olhos são abertos, nada a enxergar além da escuridão. As mãos procuram o interruptor, procuram uma luz, mas nada funciona. A energia foi assassinada, a luz da casa foi destruída com fúria por um raio irado...



Era dia de ação de graças. Mas não havia nenhuma graça naquele dia. A manhã cinzenta, sem chuva e sem sol, sem água e sem fogo, sem claro e sem escuro. Nada a ser visto, nada a ser amado. A casa solitária foi se enchendo de passos vazios por dentro, até que um ser entrou e começou a dominar todo o ambiente. É difícil saber qual o propósito de um beija-flor fora das flores. Assim era o ser celestial aqui na terra. O que faria um anjo neste mundo de dores e sofrimentos? O local foi se enchendo de repente e ninguém mais podia ficar indiferente a tudo o que estava acontecendo.



A beleza excelsa desse ser deve ser apreciada e nada mais. Pessoa já afirmou uma vez e engana-se quem diz o contrário: o mundo não se fez para pensarmos nele, mas para olharmos para ele e estarmos de acordo. Crendo ou não nisso, é difícil negar as coincidências do Guardador de Rebanhos. As coisas acontecem, o mundo ora nos fere, ora nos anima. Nascem e morrem todos e tudo. Questionar o aquém ou o além-túmulo nunca trará respostas concretas, no mínimo, alívio espiritual para nossas almas. Se fomos feitos do pó ou se realmente somos filhos de um ventre não importa, o importante é estar vivo e ver, ver e ver este mundo. Viver, viver e viver (n)este mundo já é uma outra história. Muitos apenas sobrevivem no mundo; outros mal sabem que estão vivos; e alguns já se declaram mortos...



O beija-flor que penetrou na casa batia suas asas numa velocidade normal para os pássaros de sua espécie, mas muito rápido para os olhos humanos. Os olhos de todos, então, centravam-se no beija-flor. Enquanto essa ave-anjo encantava os seus apreciadores, na cama, estava, inerte, sem nenhuma ação.



Entrando no quarto, todos puderam ver na cama, parado, com os olhos penetrados no íntimo. O barulho dos sapatos no assoalho era forte. Lágrimas vieram aos olhos, os peitos chiavam, gritos de desespero e de ordem. Perguntas feitas e respostas impossíveis. Quem iria imaginar que um dia alguém se importaria em visitar a solidão. Neste estado de completo isolamento, deitado na cama previra sua sina.



Agora ao redor da cama, os presentes rezavam, murmuravam de velas na mão. Deitado na cama sereno permanece. Um sono contínuo, ininterrupto para os que acompanham a cena. Mas por dentro, o sonho misterioso sempre diz algo que ninguém pode escutar, além de seu sonhador. Uma dormência almejada intrinsecamente por todos os viventes, inconsciente, porém necessária e justa. Aproxima-se o beija-flor e toca a fronte...



O beija-flor calmamente chega ao rosto e abre os olhos. Em pé, ouvindo barulhos, o tato não sente nada. Os olhos não conseguem enxergar nada além da escuridão. O interruptor não funciona, nada de luz. A solidão continua agora mais intensa, sem luzes. As batidas da pequena ave servem de guia pela casa até a porta que é aberta e transpassada pela primeira e última vez...



Nunca antes derramaram lágrimas, e estas que agora caem sobre o corpo já são imperceptíveis... não é preciso testemunhas quando se ultrapassa o fim...

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por