Juiz de Fora

Jornal O Norte
Publicado em 23/04/2009 às 10:15.Atualizado em 15/11/2021 às 06:56.

Marcelo Braga


Escritor


(mqbraga@hotmail.com)



Tenho saudades do carrinho-de-rolimã que me precipitava pelas ladeiras de Juiz de Fora; mas não vou chorar aqui a infância derramada.



Minha vida é um constante ufanismo à infância, ou mesmo de um passado menos remoto. Qualquer coisa que me reporte a ontem me mantém mais longe do amanhã, e assim me encanta, me cativa e me ganha. Mas, longe de mim cair num lugar comum como esse. Além de não haver coisa mais detestável do que ficar lendo lamúria e mitos dos outros. Poupá-los-ei, queridos leitores.



Quem não tem uma lembrança gostosa?



Uma das minhas leva-me direto a Juiz de Fora, cidade mineira onde vivi.



Lá, havia brincadeira de rua, parques de diversões amiúde, um cachorrinho que aterrorizava minhas manhãs e a casa mal-assombrada do final da rua.



Morávamos numa casa gostosa, de quatro quartos, com direito a uma varandona de fora a fora, uma rede gostosa de se balançar, um quintal enorme para a minha meninice e um tanquinho que chamávamos piscina.



O nosso caseiro, de nome Jorge, fazia de tudo um pouco. Mas o que mais gostava de fazer era entreter-nos. Inventava brincadeiras, organizava corridas de bicicleta, jogava pingue-pongue conosco. A coisa que mais me impressionava e divertia era quando ele resolvia dar uma de mágico. E danava a tirar uma fita quilométrica de dentro da boca, que eu não havia visto lá antes. Pouco depois, ele explicava: engolia o tecido com água, deixando só um pedacinho para poder puxar. Não tinha pudores em revelar seus truques.



Outro atrativo era a casa do vizinho. Mais especificamente o pequeno mico que lá morava, acorrentado pelo pé, como um papagaio sem asas. Era muito esperto, pulava e brincava – na medida do possível –, soltando, invariavelmente, seus gritinhos de peralta. Era a oitava maravilha ter um bicho tão diferente pertinho assim! Pegava meu bodoque e tentava lançar, o mais próximo que conseguia, pequenos limões, para ver se ele comia.



A liberdade acabava, quando o assunto era a última casa da rua. Acostumado a trançar para cima e para baixo, percorria todas as ruas da vizinhança. Mas não havia o que me fizesse caminhar alguns passos e ir parar no final de minha rua. Pouquíssimas vezes, cheguei a me aproximar da casa mal-assombrada. E nunca sozinho!



Em época de férias, a felicidade era dobrada. Época também da chegada dos primos, que viviam na capital. Para eles, as novidades eram muitas: a liberdade de brincar pelas ruas, soltar pipa em descampado, meu carrinho-de-rolimã, o quintal de nossa casa, nossa piscininha, o mico espoleta, a farra que fazíamos juntos, a casa do fim da rua… Tudo era alegria. Mas eles nunca tiveram idéia de como deixavam meu coração, quando arrumavam as coisas para voltar a Belo Horizonte. Para se ter uma noção: depois de cheio, o vazio fica ainda maior, mais vazio.



Mudamo-nos de lá quando eu ia fazer sete anos.



Ainda hoje, sou surpreendido por flashes de paisagens, de pessoas, de coisas, de experiências que trouxe de lá. Lembranças que emergem de um emaranhado denso. Por vezes, são tão singelas e únicas que parecem não ter existido!



E tudo isso me dá uma saudade colossal.



Alguns anos atrás, tive a oportunidade de voltar à cidade de minha infância depois de tanto tempo sem visitá-la.



Passei uns dias meio perdido, estranhando a grandeza que ela atingira. Perambulei pelas ruas, totalmente desnorteado.



Mais habituado, comecei a procurar os marcos que ainda tinha na memória. Achei a escola onde eu estudara; as ruas que eu costumava cruzar; o clube que freqüentava; a pracinha onde brincava.



Um dos flashes me veio, e foi com uma emoção enorme que estacionei o carro defronte à nossa casa!



Como ela me pareceu pequena e simples! Mas bastaram alguns minutos, para que ela voltasse ao seu tamanho normal: baú de todos os sentimentos.



Saquei da máquina fotográfica e registrei cada cantinho – seu portão branco de ferro, o murinho de pedras, o jardinzinho da frente, a garagem, a porta envidraçada, o telhado cinza. Pena não ter podido entrar, para rever tudo, notar as mudanças, conversar com os novos donos, saber da piscina, contar que ali para baixo vivera um pequeno sagüi, segredar-lhes qualquer coisa agradável e íntima, como um ex-amante que fala da eterna namorada.



Não chorei ao me despedir dela, para que não houvesse mais tristeza nas novas lembranças que eu estava acabando de coletar.



Podem ficar tranqüilos: a resposta é sim! E eu seria doido de não avançar mais um pouco? De não ir ver o que havia no final da rua?



A poucos passos do lugar onde eu lembrava ficar a temida casa – já não sabia se ela realmente existira ou não –, parei. Talvez fosse melhor deixar tudo como estava. Mesmo lembranças ruins têm o direito de existir. Não seria um trauma às avessas descobrir agora que a casa nunca fora mal-assombrada, que não passara de uma casinha feia, pobre e escura, no máximo sombria?



Continuei. Eu e minha curiosidade ignorante.



Olhando, agora, as fotos, só se vê um muro branco alto e inteiriço, com um pequeno buraco no meio. Nesse buraco estão entulhados diversos troncos de árvore e muita vegetação. Com muito esforço, divisa-se um único muro de um verde vencido, com a caricatura de uma janela e um vão, que abrigara uma porta.



Mais nada. Aquilo era o que restara de um dos maiores medos de minha infância.



Pensei em especular algumas coisas, tentar entender o que acontecera, mas desisti. Não tenho lembranças do que realmente havia ali. E nunca mais saberei. Como um dos tantos mistérios que há nesse mundo.



Entrei no carro, pensando em tudo o que o tempo é capaz de fazer.

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