Itamaury Teles de Oliveira
Quando era estudante de Administração, em Belo Horizonte, sempre que ocorria um feriado prolongado, fazia de tudo para viajar para Montes Claros e Porteirinha. Aliás, até hoje tenho essa compulsão, pois, por imposição de ofício, voltei a morar na Capital, a partir de 1991.
Muitas vezes fazia o percurso em minha possante moto Yamaha RD 350 cc, de torque tão violento que tinha o apelido de "tampa de caixão". Se o motoqueiro não fosse bom mesmo, iria para o beleléu na primeira arrancada.
Eu nunca tive problema algum com a minha moto, vinho-e-preta, que contribuiu enormemente para o exercício do meu sagrado direito constitucional de ir e vir.
Às vezes, contudo, era impraticável viajar de moto. Com tempo chuvoso ou frio intenso, preferia ir de ônibus, por óbvias razões.
Numa dessas ocasiões, aconteceu algo que jamais pude esquecer. Era uma viagem noturna, em ônibus da extinta empresa Imperial, que fazia a linha de Belo Horizonte a Montes Claros. A saída era às 23 horas e chegada em Montes Claros às 6 horas da manhã seguinte.
Ao adentrar o coletivo e localizar a minha poltrona, reconheci um antigo médico que havia trabalhado em Porteirinha, sentado exatamente à minha frente. Muito gordo, com um boné da Honda atarracado na cabeça, braços cruzados sobre a grande barriga e visivelmente embriagado.
Quando o ônibus começou a transitar pela estrada, já saindo da capital, as luzes foram apagadas. Todos começaram a se acomodar nas poltronas da maneira mais confortável possível para tentar dormir um pouco nas sete longas horas de viagem. Aí é que começou tudo. O velho médico começou a falar sozinho sobre seus planos, em voz alta:
- Ô, diacho, tenho que chegar em Montes Claros às seis da manhã e pegar outro ônibus pra Porteirinha...
Novo silêncio no ônibus.
Ao passarmos pela entrada de Sete Lagoas, novamente o médico soltou sua tonitruante voz, que acordou todos os passageiros, que já começavam a dormir. Como um chefe de trem que vai anunciando as estações, ele gritou:
- SETE LAGOAS...
O anúncio evocava acontecimentos passados, como se estivesse lembrando de algo muito agradável ocorrido em sua juventude por aquelas plagas. Foi o que me pareceu.
Uma hora mais tarde, vi que estava enganado, quando passamos por Paraopeba. Ali também, novo berro:
- PARAOPEBA...
Entre Paraopeba e Curvelo, o velho médico inovou. Não permitiu que ninguém mais dormisse no percurso. Começou a ler todas as plaquetas que havia dentro do ônibus:
É PROIBIDO FALAR COM O MOTORISTA.
E continuou, logo a seguir:
- É PROIBIDO FUMAR CACHIMBO, CHARUTO OU CIGARRO DE PALHA!
Uma hora mais tarde, outro anúncio de arrasar quarteirão:
- CURVELO...
Entre Curvelo e Corinto, aproveitando-se do fato de que todos estavam mais vigilantes, pois em Curvelo tinha sido a parada para café, ele, deliberadamente, economizou qualquer tipo de anúncio. Mas, quase uma hora depois, quando avistou a nova cidade do alto da ponte anunciou:
- CORINTO...
De Corinto até Buenópolis, entre Augusto de Lima e a entrada para Santa Bárbara, ele leu, em alto e bom som, que:
- O LIVRO DE QUEIXAS DO D.E.R ENCONTRA-SE NESTE VEÍCULO À DISPOSIÇÃO DOS SENHORES PASSAGEIROS...
Depois, passando por Buenópolis, novo grito propagando aquela cidade. Quase cinco horas da manhã, o penúltimo anúncio:
- BOCAIÚVA...
Dali, até chegar em Montes Claros, o nosso companheiro de viagem leu a última palavra ainda não pronunciada. Mas incomodou bastante. Repetia, a cada dez minutos, com inflexões de voz variadas, o nome da empresa de ônibus, ressaltando, de forma inesquecível, a sílaba final:
- IMPERIAL... IMPERIAAAL...
Ao chegar à antiga estação rodoviária, os passageiros, insones, com profundas olheiras, iam pegando seus pertences e gritando, em algazarra, para surpresa do médico, já refeito da bebedeira:
- MONTES CLAROS... MONTES CLAROS...