Infinitas possibilidades de ser arte

Jornal O Norte
Publicado em 02/07/2010 às 08:39.Atualizado em 15/11/2021 às 06:31.

Mara Narciso


Médica e acadêmica de Jornalismo


 


Quem foi Ray Colares? Uma vez fui com sua sobrinha Ângela Colares ao seu ateliê. Artista ausente, porém estavam lá todas as maravilhas e mistérios, numa profusão de fotografias e pinturas. A meia luz do local provocava uma curiosidade explosiva em nós adolescentes. As inúmeras fotos dos pés de Ray Colares eram uma excentricidade a mais em seu currículo. A desordem organizada, e nós duas vasculhando sem tocar em nada, num profundo respeito.



Idealizada pela arquiteta Viviane Marques e concretizada pelo designer Caíco Siufi e pela jornalista Felicidade Tupinambá, no mês de junho aconteceu no Montes Claros Shopping Center a 3ª Mostra Daqui Por Diante Raymundo Colares. Artistas da cidade receberam como substrato um guarda-chuva e deveriam fazer arte referindo-se às criações e ao artista plástico.



O folder sobre a exposição fala da arte e da vida de Ray Colares e diz numa certa altura: “Com efeito, viveu seus últimos anos como mendigo, atropelado por um ônibus e recolhido por vontade própria a um sanatório em Montes Claros. Nesse hospital, Raymundo Colares faleceu, quando seu leito de enfermo incendiou-se, devido a uma ponta de cigarro inadvertidamente caída entre lençóis.” Segundo a versão corrente, ele teria morrido em meio às chamas de um hospital psiquiátrico, dez anos depois da nossa imersão bisbilhoteira ao seu estúdio. No YouTube há um vídeo chamado “Chamas” que dá isso como certo, e na mostra, um outro vídeo aponta a morte no incêndio.



Essa versão foi contestada pela sobrinha Ângela Colares, que explica como foi: “jornalista nem sempre diz a verdade, e muitas vezes prefere inventar uma tragédia diferente daquela acontecida. Tio Ray realmente foi atropelado por um ônibus no Rio, estava sem documentos e foi atendido como indigente no Hospital Municipal do Rio - Miguel Couto. Voltando a si do golpe sofrido, telefonou para a família e sua irmã  foi buscá-lo no Rio. Chegou a Montes Claros engessado e de muletas. Trabalhou dois anos como Professor de Artes no Conservatório Lorenzo Fernandez, gastando o salário todo, no dia que o recebia, com amigos mendigos e bebida para todos que estivessem no bar. A família pensou em interditá-lo e o ameaçou disso. Foi quando pediu para ser internado no ProntoMente, e veio a falecer, após acidente com o incêndio do seu colchão. Sobreviveu lúcido 24h aos ferimentos de queimadura de segundo e terceiro graus em 70% do corpo, e morreu após isentar o hospital da responsabilidade pelo ocorrido, e após pedir desculpas à mãe pelos tempos difíceis, e dizer que a amava muito. Acho importante que a verdade seja dita. Tio Ray foi um grande artista sim, mas foi antes de tudo um homem sensível e incompreendido. Seu amigo Hélio Oiticica dizia que ele tinha a sensibilidade de alguém a quem se tirou a pele toda e deixou todos os nervos a mostra. Ele, Oiticica, não sobreviveu para ver o amigo realmente em carne viva no ultimo dia de vida no Hospital São Lucas, em Montes Claros , aos cuidados de uma equipe médica da qual fazia parte seu irmão Fernando Colares, meu tio caçula.”



Dito isso, vamos às infinitas possibilidades da arte de Ray Colares, um montes-clarense que desenvolveu a técnica dos cadernos com recortes e a pintura em movimento, sendo premiado pelo MAM - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Fez pinturas geométricas com predileção por ônibus, trabalhos tridimensionais, construtivismo, gibi, arte pop e outras características que puderam ser vistas na Exposição Daqui por Diante. A arte de Ray Colares é arte viva. Cada passada de página em seus cadernos-recorte permite uma sensação nova, uma reação visual diferente. A arte vai crescendo em nossa frente, emocionando e provando a genialidade do artista.



O resultado obtido sobre o guarda-chuva-substrato dá o indicativo, ainda que sutil, de como é rica a obra da Ray Colares. Um a um dos guarda-chuvas recriados, seja aberto ou fechado, de pé ou deitado, alegre ou triste, sereno ou dramático, traz partes de Ray Colares. Aconteceram criações geométricas, em cores fortes, com materiais variados, chiques, kitsch, políticos, suaves ou exagerados, como foi o artista.



As obras estavam dispostas em círculos pelo chão, ou quase no topo do prédio. Cada peça era um pedaço da vida do pintor, exceto uma das obras, que mostrava Ray Colares inteiro, embora em partes. Foi algo contundente, pois, num guarda-chuva preto semi-aberto e dependurado, pendiam diversos oratórios pretos, e cada um registrava uma faceta do artista: fé, dinheiro, remédios, música, droga, sexo, quadrinhos, pinturas, num mostruário intrigante e compartimentado da vida dele.



Mineiro, quando não abre banco - teve um cujo guarda-chuva símbolo significava proteção-, faz muita arte. Assim, reverencio aos participantes, e se não tiro meu chapéu, abro o meu guarda-chuva, por pura inquietação.

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