Antônio Augusto Souto
No meu tempo de professor, raramente lia obras de escritores estrangeiros. E quando o fazia, a preferência era por livros técnicos (de filologia, lingüística e teoria literária) ou por alguns clássicos de todas as épocas. Por dever de ofício ou provincianismo, interessava-me, prioritariamente, pelos prosadores e poetas de língua portuguesa brasileiros e lusitanos, uma vez que não me era fácil ter acesso aos escritores da África, que sabia existirem, e dos bons.
Depois que deixei as salas de aula, passei a ler gente de todos os quadrantes, desde que freqüentassem a lista semanal dos mais vendidos: J. J. Benitez, Saramago, Dan Brouwn, Garcia Márquez, por exemplo.
Dia desses, comecei a ler “O Caçador de Pipas”, do afegão Khaled Hosseini. Parei, injuriado, na página 81. Fiz a marcação devida e pus o livro na prateleira. Fui fazer palavras cruzadas. Qualquer dia, pego-o novamente e concluo a leitura. Ou não.
Nesta manhã insossa de feriado, tenho duas opções, para depois de digitar esta croniqueta: iniciar a leitura de “Quando Nietzsche Chorou” ou encarar o “Cobrão”, que acabo de comprar, em banca da praça Dr. Carlos. O livro de Irvin Yalom foi presente de Lalá.
É possível que, a esta altura, a queridíssima leitora e o prezado leitor estejam querendo saber qual a injúria que me fez abandonar “O Caçador de Pipas”. Satisfaço-lhes a curiosidade, em poucas linhas: como abomino covardia, em qualquer circunstância, senti-me agredido, em meus princípios. E isso aconteceu na página 81: Amir, narrador-protagonista, assistiu, passivamente e escondido, à extrema humilhação imposta a Hassan, o amigo quase irmão que demonstrou, inúmeras vezes, ser capaz de dar a própria vida por ele.
Claro que estava consciente de que a trama era pura ficção. De mais a mais, desde a página inicial, a personagem vinha sendo modelada, psicologicamente, para se revelar, a qualquer momento, o pusilânime completo da página 81. Mesmo assim, o impacto foi grande. Na minha modesta opinião, o senhor Hosseini ou carregou a mão na covardia ou exagerou na humilhação ao pobre Hassan.
Ora, desde o início da narrativa de “Grande Sertão: Veredas”, Guimarães Rosa oferece ao leitor pistas sutis de que Diadorim era mulher. No final, quando a verdade se escancara, o leitor já está preparado para a revelação. Escritor competente é assim: evita impactar, negativamente, o leitor.
Em “D. Casmurro”, Machado de Assis, a partir do capítulo inicial, traça, paulatinamente, o perfil psicológico de Bentinho. Então, leitora querida, o Casmurro que se revela, a partir de certo momento, não injuria o leitor. O mesmo acontece em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e em “Quincas Borba”. Escritor competente é assim.
A que conclusão estou pretendendo chegar? Elementar: na literatura de língua portuguesa, particularmente na brasileira, há romances, novelas, crônicas e contos bem melhores que as mediocridades que, ultimamente, têm ocupado a lista das obras mais lidas, aqui e alhures.
Por falar em Machado de Assis, é bom ressaltar que foi ele o criador da crônica, a espécie grácil e leve de que sou aprendiz.