Fratriarcado - Notas amorais, porém éticas, sobre a questão da superioridade masculina

Jornal O Norte
07/10/2005 às 10:27.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:52




Ellen Parrela *


 

O Sr. Leonardo Campos, em artigo publicado há duas semanas aqui no jornal Opinião, atribuiu a normalidade do comportamento masculino da traição ao imperativo biológico que faz dos homens maiores produtores de testosterona, principal andrógeno da circulação, responsável pelo desenvolvimento e manutenção das características sexuais masculinas e do estado anabólico dos tecidos. Eu, que amo os homens, que invejo-lhes a perene fertilidade, que adoro todas as manifestações objetivas e subjetivas de sua virilidade, quero dizer, mesmo correndo o risco de perder a amizade de minhas amigas feministas, que concordo: os homens traem mais e mais desavergonhadamente que as mulheres. Mas, com certeza, não é por conta do testosterona que eles terão sempre meu perdão e minha complacência. Dito isso, eu quero falar mais umas duas coisinhas.

 

A idéia de normalidade corresponde à idéia de freqüência, ou seja, é normal o que é mais freqüente, o que ocorre mais amiúde. Daí a curva normal, função matemática, destinar ao espaço mediano, entre um extremo e outro da curva, todos os fenômenos que se repetem com freqüência contabilizável. Eu posso falar, então, que normal e mediano são sinônimos, e que o comportamento desviante, extremado, é anormal porque é raro, infreqüente, incomum. É raro, raríssimo, por exemplo, toparmos com homens que nunca traíram na vida. Se formos seguir a curva matemática da normalidade, trair seria normal, porque, incontestavelmente, é o comportamento mais freqüente entre os homens.

 

Durante anos eu também usei uma metáfora biológica para tentar explicar porque os homens traem com mais freqüência que as mulheres: a metáfora tinha a ver com a configuração do óvulo e dos espermatozóides. Assim, as mulheres teriam, inscrita no desenho do seu ciclo reprodutivo, a tendência à exclusividade e à atitude seletiva, inspirada, com certeza, no comportamento unicista do óvulo que, sozinho, grave e sereno, aguarda a competição feérica dos espermatozóides, para abrir-se ao mais rápido, ao vencedor. Do mesmo modo, os homens teriam uma tendência ao espalhamento, à multiplicidade, elevada à décima potência se considerarmos que a  fertilidade dos homens é diuturna, renovada todos os dias da semana, toda as semanas dos meses, todos os meses do ano, todos os anos da vida, até findar-se com a morte ou diminuir, por algum processo deletério, na velhice. Ao contrário, tudo na mulher é cíclico, instável, hoje está, amanhã não, residindo, talvez, aí, a natureza misteriosa e imprevisível das fêmeas humanas, que, em seu lusco-fusco, nunca se dão a conhecer por completo.

 



 

No entanto, homens e mulheres são muito mais do que processos biológicos comandados pela excreção de seus humores internos. Fosse assim, até hoje assistiríamos a machos irascíveis arrastando pobres fêmeas indefesas para a caverna mais próxima, a fim de obter delas rápido e descomprometido prazer sexual. Cinco mil anos de civilização foram capazes de forjar comportamentos muito mais sofisticados e inteligentes, porque é próprio da inteligência moldar o comportamento a partir dos resultados objetivos que ele pode gerar.

 

Outro dia eu li, em algum lugar, que a simples mudança da posição de nossos antepassados primitivos durante o ato sexual gerou um salto civilizatório da maior monta: teríamos descoberto o amor quando resolvemos variar a posição habitual, com o macho penetrando a fêmea por trás, ao modo de todos os outros animais, e passamos a copular de frente, o que possibilitou a que nos olhássemos nos olhos durante o gozo. Eu sei que ciência, às vezes, pode ser pura especulação, mas nesse caso acho que tem toda a lógica: perceber as expressões de prazer do outro e saber-se agente desse prazer deve, sim, ter gerado vínculos afetivos muito mais poderosos e permanentes.

 

A questão é que somos bichos culturais, ou seja, inventamos comportamentos e conferimos a eles legitimidade e justificação, conforme sirvam a nossos interesses. A ciência está cheia de exemplos de mutações genéticas que acontecem a reboque de mudanças comportamentais provocadas pela interação do homem com o meio natural e social Essa capacidade é, em última instância, o que garante a evolução das espécies.

 

Muitos pesquisadores vêm aventando que o salto evolutivo que o homem está experimentando presentemente é o que vai fazê-lo sair da condição de homo sapiens para a de homo afetivus, pelo reconhecimento do papel dos sentimentos como principal força modeladora de nossas escolhas e, por conseguinte, de nosso comportamento social. Acho essa idéia da maior importância. Nesse processo, existe um sentimento, em particular, que pode desencadear completa revolução na relação entre homens e mulheres: a confiança. Eu penso que confiança e liberdade são condições que só servem se forem completas, totais: não existe meia confiança, nem liberdade relativa. Confiança e liberdade totais é que permitem que o homem que eu amo possa, sim, se encantar com outra mulher – porque é isso o que acontece, sempre, com freqüência, ou seja, é isso que é normal... - e mesmo assim continuar merecendo o meu amor, eu, que não tenho a menor ilusão de ser a única mulher desejável nesse mundo... Para que isso funcione, é preciso vencer o medo e a mentira, para mim, sentimento e ação insuportáveis. Homens e mulheres são bichos tão instintivos e intuitivos, que é bobagem imaginar que podem enganar um ao outro. Eu, pessoalmente, que tenho propensão acentuada para o sonho e o devaneio, tenho a verdade como condição indispensável para manter meu senso de orientação. A mentira, na minha opinião, aumenta a entropia nas relações e é isso o que gera tormento e dor.




O ciúme é a dor de não ter sido convidado para a festa - eu é quem inventei isso – e o ato de compartilhar experiências com o outro, aumenta a confiança e a institui como condição da liberdade, obviamente se formos capazes de vencer a possessividade e a hipocrisia e começarmos a cultivar relações de confiança como quem cultiva jardins.       




Seu Leonardo Campos não precisava apelar para os hormônios para justificar o gosto pela variação de parceria sexual, aliás, comum também entre as mulheres. Essa só é uma questão importante porque a sociedade patriarcal, com o apoio da igreja, resolveu eleger o sexo como O problema. Bobagem. Sexo é o melhor brinquedo inventado pela espécie e é por termos pervertido essa verdade que sofremos tanto. Por termos pervertido essa verdade, vivemos nos comparando a outros bichos muito inferiores na escala evolutiva. Aliás, Seu Leonardo, lembrei de mais uma coisa: que bestagem é essa de que só animais que urinam de pé podem ser senhores de seu próprio destino? O senhor está incluindo aí vaca, bode, touro e cachorro? Todos eles urinam de pé e eu duvido que o senhor compartilharia decisões com eles. É senhor do seu próprio destino quem cuida do outro, quem confia e quem, mijando de pé, tem o cuidado de não molhar a borda do vaso, pensando na companheira que vai usá-lo mais adiante...   

 

* Pesquisadora e professora na área de Humanidades





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