Eduardo Lima
Guilherme, desta sua estranha expressão de hematoma, diga-me: cadê seus olhos, meu irmão? Onde ficaram seu lampejo e o modo? Sua impressão, o distanciamento, a idiossincrasia? Restam apenas os livros lidos mudos numa estante muda, numa sala muda em ausência, pelo sopro do seu termo. Eis o que nos resta além do olhar opaco de Hilda, nossa mãe. E não me cabe saber o coração de Hilda, nem vaga dele, nada dele.
- Coração de mãe que perde
filho é um retumbar de silêncios...
O coração de Hilda é uma catedral. Coração de mãe que perde filho é um retumbar de silêncios. Por isso Guilherme, meu irmão, mesmo daí, desta vastidão que clama, mire nossa mãe. Peça aos anjos e aos viciosos que a segurem. Ela carece Guilherme. Por te ver assim, irrestituído, por não lhe ouvir mais a voz, avistar os cabelos ainda pretos vivos, o nariz adunco em perfil homenagem ao pai extinto, por toda essa solidão que é você em nós. Hilda merece atenção.
Nossa mãezinha está nulificada. Os olhos dela, meu irmão de vento, parecem águas turvas, marejados, opacos, como se a guardar na umidade da existência inteira somente coisa seca. Não há como medir-lhe sequer fundura pelos olhos; nossa mãe é um abismo. Nossa mãe é uma pedra, também. Dó de mãe assim me dá, irmão já ido, quando a vejo curvada pela agonia intransmissível, como é incomunicável a pressa que lhe roubou de nós.
- Quando lhe vi, meu irmão, seu corpo morto, laivado em pisaduras, sangramento, marcas de despenhadeiro, lembrei-me de Hilda...
Quando lhe vi, meu irmão, seu corpo morto, laivado em pisaduras, sangramento, marcas de despenhadeiro, lembrei-me de Hilda. Lembrei-me que há não muito choramos juntos a ida do caçula Cassiano, que nos deixou, num domingo também, na fúria do trânsito. Pois a nossa mãezinha de sempre - que cuida de nos fazer carícias com pitos e bolos - vela seu senso distante, adormecido, para sempre indesperto, calado na face desfigurada e na alma que adeja acima de sua inércia, do vazio, do corpo abandonado. Nós ficamos aqui, meu irmão. Com saudade e aflitivamente marcados. Minha mãe não é mais a mesma; mães que perdem filhos não se repetem, nunca mais dormem, não riem sozinhas, não folgam domingo.
Mães que perdem filhos são um deserto, um leito seco, uma gota preste ao sol, um precipício. Por isso Guilherme, meu irmão de tanta luz, pelo que a incompreensão lhe tenha tocado, ache modo de todos os caminhos se cruzarem. Leva uma lágrima de nossa mãezinha no bornal de sua aragem. Leva dela quase tudo. Nossa mãezinha está curvada de sua ausência, chora, esquece e, quando se reanima, parece rir de saudade, lembra seus panos e planos, o primeiro passo, seu labor justicialista e sua postura Sartre.
No mais, talvez não tarde, sejamos nossa mãezinha e eu, leito de rio do qual se veja o fundo, lugar inatingível, plano onde habitem, além das coisas relevantes, musgos, pedras e piabas.
Extraído do Hoje em Dia