Márcio Adriano Moraes
Professor de Literatura e Português
marcioadrianomoraes@yahoo.com.br
Abortar ou não abortar, excomungar ou não excomungar, criticar e criticar eis a questão ou a razão ou a emoção? Assunto não pensado por Shakespeare. Talvez o caso da garotinha de Alagoinha (PE), grávida de gêmeos, seja o de maior repercussão desde a Isabela Nardoni (que Deus a tenha), e que Deus também tenha os dois irmãozinhos que foram podados de conhecer o mundo pós-ventre.
O que tornou o caso dessa criança tão extenso foi o pronunciamento do arcebispo dom José sobre a excomunhão. Se o religioso não tivesse dito nada, o caso já estaria encerrado e esquecido pela mídia e pela população, como a da Isabela. Sensacionalismo. Afinal, quantos estupros, sobretudo praticados por padrastos ou pais ocorrem? Recentemente, em Irai, Rio Grande do Sul, nasceu um bebê (uma menina) de uma menina de 11 anos que engravidou depois de ser abusada sexualmente pelo pai adotivo. Abortos acontecem às claras e às escondidas, em hospitais respeitados e em fundos de quintais. Agora excomunhão é raridade, pelo menos na concepção da maioria. O que as pessoas não sabem é que excomunhão é tão recorrente quanto às chuvas de São Paulo. A verdade é que, infelizmente, os católicos não conhecem a fundo sua fé. Para ser franco, a maior parte dos praticantes religiosos desconhece as doutrinas, os ritos, os símbolos e simbologias, as exegeses, os mistérios de sua fé. Assim como poucos brasileiros conhecem o Brasil, a maioria não conhece a Constituição, seus direitos e deveres. Tudo é superfície e bem escorregadia. É fora atrás de fora.
De fato, o bispo não precisava dizer nada que a excomunhão dos médicos e de quem ajudou ou induziu o aborto é automática. Lê-se no código canônico cân. 1398: “Quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae”. Essa expressão latina é explicada no Catecismo da Igreja em nota ao § 2272: “A expressão latina latae sententiae significa ‘de sentença já promulgada’ e indica que o transgressor incorre na excomunhão sem que a autoridade competente precise pronunciar-se”. Logo, o bispo podia ficar quietinho; os médicos já foram excomungados. Todos os médicos e pessoas que praticaram ou praticam o aborto estão excomungados. Existem outros casos de excomunhão latae sententiae como apostasia, heresia, cisma, isto é, todos que não são católicos, logicamente, estão excomungados. E o que é excomunhão: “Alguns pecados particularmente graves são passíveis de excomunhão, a pena eclesiástica mais severa, que impede a recepção dos sacramentos e o exercício de certos atos eclesiais. Neste caso, a absolvição não pode ser dada, segundo o direito da Igreja, a não ser pelo Papa, pelo Bispo local ou por presbíteros autorizados por eles. Em caso de perigo de morte, qualquer sacerdote, mesmo privado da faculdade de ouvir confissões pode absolver de qualquer pecado e de qualquer excomunhão”.
Resumindo, excomungar significa dizer que a pessoa não pertence ou não comunga mais aquela fé. Sinceramente, há muitos católicos que se auto excomungam, pois não praticam fidedignamente a sua fé. A coisa é mais simples do que o povo pensa. Excomunhão não tem nada a ver em ir para o inferno ou não. Ninguém sabe quem vai para o inferno ou não, isso é assunto de Deus (para quem acredita nele). Cito, por exemplo, o caso dos suicidas (o povo acha que o suicida está no inferno), o Catecismo é claro: “não se deve desesperar da salvação das pessoas que se mataram. Deus pode, por caminhos que só Ele conhece, dar-lhes ocasião de um arrependimento salutar” (§ 2283).
Aí vêm vários cronistas e articulistas e começam a dizer que a Igreja não acompanha a evolução, é retrógrada, que é isso, que é aquilo. Ah, fala sério! Daqui a pouco vão querer que o padre celebre missa de calça jeans (evolução)! Os mulçumanos que apedrejam mulheres adúlteras estão errados, afinal infidelidade matrimonial é evolução, ah, eles também devem usar calça jeans e as mulheres, minissaias. Felizes os índios que ainda andam nus!
A indignação e os comentários do bispo foram alarmantes por se tratar de aborto. A Igreja é contra o aborto desde os primórdios. Não costumamos ver nenhum bispo excomungando um espírita ou um protestante ou qualquer praticante de heresias, por exemplo. Isso não gera polêmica. Contudo, o aborto é um assunto delicado, pois se trata da vida de seres indefesos. É um pouco complicado.
Não sou médico para saber algum diagnóstico, mas sou católico e procuro conhecer os ensinamentos da minha Igreja. Para isso, há o Catecismo, o código canônico, as encíclicas e muitos outros documentos. Mas o que mais me chama a atenção é o fato biológico da concepção. Se uma garotinha de 9 anos é capaz de engravidar, a lógica é a de que essa garotinha também possa dar à luz. A garotinha de 11 anos que deu à luz a uma menina passa bem, obrigado. Não sei quantos quilos ela tinha nem o bebê. Os gêmeos confundidos com lombrigas pela avó estão mortos, não sei se no céu, no inferno, no purgatório (limbo não existe no catecismo, se algum católico quer saber, são outros quinhentos). Só sei que sempre há escolhas, sempre há recursos médicos, sempre há alguma crença.
Ter um filho advindo de um estupro, sem dúvida, é algo tão lastimoso quanto saber que se é estéril e não se pode gerar uma vida. Então, apesar de toda crueldade, há no bem fundo do ser humano, um sentimento de que uma flor, com cuidados especiais, é capaz de nascer em solo ruim. É preferível deixar os filhos nascerem. Quem sabe um desses que seriam abortados se tornem para a humanidade um novo Cristo e nos convença de que matar nunca foi nem será o melhor dos verbos. “Et verbum, caro factum est”.