Marcelo Braga
Escritor
mqbraga@hotmail.com
Foi de repente que me veio um desequilíbrio que nunca tinha sido meu. Como o que ela me disse segui-la sempre, principalmente em escadas de espiral. “Aqueles degraus pequenos…”, como se precisasse se justificar. A mim ou a ela mesma.
Quando ela me dissera que não queria mais o calor que sentira numa infância longínqua, tive medo de trazer na mala os 35º que haviam feito pela manhã. E roguei por palavras que pudessem me redimir. Ou, ao menos, valorizar. “E, se em vez do calor, eu levar um torpor de sentimentos?/Suspiros perdidos no crepúsculo. Sonhos ao vento…/Deixaria que eu me visse nesse azul de firmamento?/Essas janelas que me abre… lindamente!/Eu viveria de confissões, degustaria pequenas ansiedades./Ou talvez o fim de ilusões, algo de alegria e muita saudade./Uma lua inteira pra descobrir… calmamente.” Mas não tive resposta…
Logo que cheguei de viagem, entendi o silêncio. Não conseguiria devolver-me frases à altura. Chamei de bobagem e lhe repeti de cabeça: “Achei que tinha esquecido de mim… Já tentei de todas as formas achar a lua, mas não consegui! O céu aqui está nublado… Queria poder vê-la, pra me sentir mais próxima de você.”. Viu só? O que mais eu poderia querer além de você?
Todo o restaurante se apagou, quando ela disse ter tremedeiras. Continuei olhando-a, impassível. Ela baixou os olhos, e a espontaneidade da confissão transfigurou-se em desnorteio. Toda a luminosidade que havia sobre nossa mesa, e somente sobre ela, vinha daquele semblante maravilhoso.
Podia sentir seu perfume de longe. Mesmo quando ela nem estava. Nos meus dedos, grudado. Ou em cada canto de minhas narinas. De tanto inspirar. De tanto aspirar sua companhia.
Aos poucos, aquele perfume foi-se retirando, para que eu pudesse sentir o cheiro doce de sua pele. Já sabia da importância que há na empatia de aromas, como se ainda fôssemos seres agarrados a árvores, ou habitantes assustados de cavernas úmidas. E aquele cheiro que foi brotando de seus poros veio se aninhar em meus pulmões, um oxigênio inédito e viciante.
Tendo-a nos braços, fixei aquele azul: “Me conta três defeitos seus…”. Sorrindo um mel translúcido, sussurrou que tinha vários. E calou, cerrando os olhos, para que eu acariciasse seus cabelos eternamente.
Por um instante, a televisão mostrou-nos um negrume de abismo. Foi aí que vi o reflexo de meu sorriso, uma boca tão lindamente aberta, que me pareceu haver furtado dela uma de suas expressões perfeitas.
Um frio… Devia ser do açaí de mais cedo. Ajeitei o corpo, para que o colo ficasse ainda mais aconchegante. Com um gemido curto, percebi que havia exagerado, apertando-a demais contra meu peito. Mas tive a certeza de que não sairia daquela boca nem um “a” de reprovação.
Ela fechou os olhos e respirou em cadência de sonho.
Não interrompi os carinhos, os dedos escondidos naqueles cabelos longos. Não pararia por nada! Nem mesmo se sentisse certo desconforto. A mão trêmula, pelo gesto repetitivo. Lembrei o jantar, o rosto iluminado, fitando um horizonte que não havia. Minha mão tremendo mais e mais. A tremedeira também já era minha…
Para que eu entendesse que o cheiro dela estava colado em mim, não demorou muito. Não era como uma recordação olfativa, como ocorre com aromas de infância – o pastel que só a avó fazia, o caminho que se pegava para a escola. Minha pele exalava um cheiro que não era meu! Mas o dela.
E assim foi com meu hálito. Com meus gostos. Meus pensamentos. Tudo!
Agora, só existo quando me vejo nela. Pois foi para ela que tudo o que era meu fugiu. Minha ansiedade, meu cheiro, minha falta de modéstia… e meu sorriso. Que fui costurando em sua boca a cada novo beijo apaixonado.