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Sábado,20 de Dezembro

Etiquetando sentimentos

Por Cláudia Gabriel

Jornal O Norte
Publicado em 04/12/2013 às 08:39.Atualizado em 15/11/2021 às 17:16.

Por Cláudia Gabriel

A cena era de pouca importância no filme. O momento em que um casal organizava um quarto tão bagunçado que as peças, perdidas pelo caminho, ameaçavam ganhar vida própria. Quase tudo por ali parecia abandonado e sem sentido. Foram separadas três caixas para a classificação dos objetos, etiquetadas da seguinte forma: “doar”, “guardar”, “jogar fora”. Um alívio acompanhar a arrumação... E a gente conhece bem o que é isso. Abrir um armário e encaixar tudo nos seus devidos lugares. Limpa a energia - a da casa e a nossa. Fluidez é a palavra. Fluidez que leva à fruição.

Você precisa abrir espaço para usufruir das situações que se apresentam à sua vida. E como as estantes da alma são complicadas, não! Até quando se tem a impressão de que está tudo na mais perfeita ordem, do nada, algo pula à sua frente, exigindo atenção. Hora de classificar e mandar para a respectiva caixa. Difícil é etiquetar sentimentos.

Recentemente, uma amiga chegou toda animada, arregaçando as mangas e contando a novidade. Iria dar uma limpa nas gavetas do coração. Desconfiei da decisão tão repentina, mas, vendo o brilho nos olhos dela, como confidente, estimulei a faxina que não parecia muito fácil. Ela andava cansada de histórias inacabadas. Mas, ao conferir o ambiente, achou tantos entulhos que nem sabia por onde começar. Foram anos de acúmulo. Crenças e apostas em casos que fracassaram, e os motivos já não importavam mais tanto tempo depois. O problema é que aquilo tudo tinha deixado uma poeira incômoda. Provocava alergia mexer ali, mas pior seria ignorar e ser sufocada pelo ar estagnado.
 
Começou pelas fotos com um suspiro profundo. Umas doíam, outras divertiam. Rasgou as que traziam personagens que a fizeram infeliz. Queimou bilhetes e cartas com palavras mortas. Chegou ao mundo eletrônico. Apagou nomes das redes sociais, contatos com os quais nunca mais queria manter qualquer laço. Olhou a agenda do celular. Quem era mesmo aquele Antônio? Felipes, Marcelos, Rogérios tinham se transformado em sombras e ela não queria mais ser assustada por qualquer um daqueles fantasmas. A memória do aparelho também ficaria mais limpa se eliminasse cada um deles. E a pergunta: “Tem certeza de que deseja excluir o contato?” Sim! Era sempre a resposta. Acabado!

Mas nem tudo foi para o lixo. Entre os ex, alguns ganharam a etiqueta nobre “guardar”. Lembranças boas de pessoas que seguiram seu caminho, mas que, enquanto estiveram com ela, deram o melhor de si, lutaram pela relação. Esses, sim, nunca seriam empurrados para os cantos do armário. Ela sabia bem a diferença entre quem ainda admirava muito e aqueles que ficaram lá mesmo no passado e nunca deveriam sair de lá para o bem de todos. Havia ainda os amores que foram “doados” porque, infelizmente, deixaram de ter valor pra ela e vice-versa.  Mereciam uma segunda chance – seriam ainda amados com intensidade, mas não mais naquela combinação dos dois. Passados adiante com dignidade numa conclusão madura.

Depois dessa sessão de esvaziamento, minha amiga voltou com a expressão leve, como se tivesse acabado de acordar de uma noite boa. Estava decidida. A faxina ia continuar. As caixas, que já estavam cheias de sentimentos, ainda iriam receber comportamentos, preconceitos, pensamentos que ela queria classificar e esquecer.

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