O espírito de Natal é muito bonzinho, como é bonzinho o espírito genérico de Natal, o que mora aqui e acolá e vai brincando com o coração da gente.
Meu espírito de Natal, por exemplo, não se importa com o motorista que xinga no trânsito, nem se importa demasiado com a chuva muita. O referido é sentimental. O mesmo espírito, que já começa a me rodear e rodeia muitos de nós e vai indultar pecadores. Mesmo espírito vai subir ladeira, lamber picolé, refestelar-se num sofá fofo e assar um pernil magro. Mesmo espírito vai abrir umas portas e nos fazer crer ainda na lei, cega e igualitária.
O espírito de Natal não tem bússola e atira pra todo lado - mais hora menos hora acerta a gente. Acerta até gente que andou de cara amarrada, ano inteiro, e ainda cometeu enganos leves como o esquecimento e a antipatia. O espírito de Natal vaga por aí caçando gente triste, gente desencantada, gente que não aposta em nada e é o mesmo espírito que alisa os sonhos e impõe o dessonhar aos que cedo se cansam.
O malino sopro não se fez de rogado e arranjou um noivo para a moça esquecida e ainda cantou uma canção única na voz desafinada do amante.
Mesmo fantasma nos põe em busca de um presente que não vem ou nos faz esperar, sem desespero. Faz-nos menos amargos, menos azedos, menos mal cheirosos. Livra-nos do espírito suíno dos dias de dor e escárnio, dias de matar e morrer, de saltar sobre o branco e suja-lo de raiva. O espírito de Natal é bem aventurado, uma benção neste mundo de pedra e cinza que nos faz sofrer guerras e abandono, fome e solidão.
Com o espírito de Natal tão solto é bem provável que nos possamos esquecer dos grandes roubos, dos tiros a esmo que matam e da estrada que mata. O espírito de Natal é surdo, cego e mudo embora de seus olhos a tudo vejam, seus ouvidos a tudo registrem e sua voz seja uma cantiga de acordar, ou de adormecer conforme queiram. O espírito, o mesmo que mora em nós e no alto da montanha, é despojado, não tem bens nem rena, não usa vermelho, não tem a barba branca e existe na ausência inteira, indiferente, porém solidário, capaz de enxugar lágrimas e banir das bocas toda a blasfêmia.
O espírito de Natal torna-nos mansos, pacientes e nem o trânsito infernal da véspera faz nele a ira, insanidade tão comum nas filas e nos meios de esperar. Governo não mete raiva, os aumentos corporativos, os roubos, a escalada do crime, a moça fútil, nada faz rugir o bicho nosso, tão feroz nos dias sem santidade. Com o espírito de Natal por perto, brincando de esconde-esconde com as sensações da gente, tudo é perdoável, até ofensa ou pecado. Estamos, pois, sob a égide do que é nada e tudo pode. E até as dores se aposentam na rapidez do seu chegar. E ao nos tomar o tal estado sem solidez pode ser asa, ou túnica, ou aura só.
Algo que nos inteira sem tomar, algo que mora em nós e nem custa, algo que busca espaço abstraído de volume. Inexplicável, o espírito de Natal faz celebrar a vida, brandir no vento uma arma de coisa alguma, afagar cabelos e sonhar com o bem. Bom mesmo é aproveitar a presença dele e permitir, sem medos. E você? Já encontrou o seu espírito de Natal? Se não, vai aí uma pista; ele fica dentro de você. Procura com cuidado.