INTRODUÇÃO NECESSÁRIA
Senhor Editor Reginauro Silva,Mais uma vez gostaria de agradecer o espaço deste Jornal que está me abrindo muitas portas e encorajando a enviar textos para outros periódicos e revistas. Muitos amigos me sugeriam a fazer um livro com as crônicas aqui publicadas, e a sugestão está sendo acolhida. A Literatura não deve ficar em estantes, mas nas mãos dos leitores. Abraços genuínos,Márcio Adriano Moraes
Márcio Adriano Moraes
Professor de Literatura e Português
marcioadrianomoraes@yahoo.com.br
O cheiro ainda presente. A face incorpórea pendida no cérebro parecia real de tão intensa nos olhos. As narinas sentiam ainda o perfume natural do corpo suado de prazer. Foi quando, de repente, o lençol deixou-se cair no assoalho. Também sobre aquela superfície os gozos foram fortes, serenos e verdadeiros. As lágrimas não se contiveram na retina quando para cima os olhos se abriram...
Na nogueira que ficava em frente a sua casa traçamos nossas iniciais em um circunspeto coração. Não éramos tão crianças para ferir tal lenho, mas também não éramos tão velhos para deixar de fazê-lo. Com atitude pueril, então, ficou gravado com ferro Você e eu. Juras de amor foram feitas, promessas de esperas e fidelidade marcadamente sinceras. Porém, nesses momentos de devaneios amadoristas, esquecemos que somos feitos de carne e que apodrecemos como essa árvore.
Bom é apodrecer aos poucos, naturalmente, sem sentir o fétido humano. Contudo, há os que se deixam apodrecer e se contaminar por muitos ao redor. Não há vacina contra a podridão. Nascemos todos com um único propósito comum, apodrecer. Felizes os que apodrecem apenas no fim. Os que se deixam infectar durante a trajetória vital levam consigo um odor insuportável. Mas, como tudo, torna-se costumeiro ao olfato e já nem se sente mais.
Neste Natal, não saborearemos as nozes dessa nogueira. A separação cruel e jamais esperada, depois de tantos anos, climatizou a atmosfera terrena do averno. Em planos distantes, incapazes de conciliação, encontramo-nos perdidos. Na luz maternal mariana, a esperança vem ao mundo encarnada. Só espero que essa mesma luz esteja sobre você aí no alto, a luz que um dia nos iluminou, escravos.
As palavras daquele instante apaixonante foram fortes, límpidas e genuínas: enquanto as letras grafadas no lenho estiverem lúcidas, estaríamos juntos, inseparáveis. Consagração de um amor natural e frágil. Qualquer Machado poderia dar um fim ao sonho do véu, dos anéis e dos gozos. As letras não são suficientemente fortes, capazes de sustentarem um velho arvoredo. E assim foi feito, sem nenhum respeito, sem tempo de despedida, apenas a dor da partida...
O abraço quente, ventre com ventre, lábios com lábios até o além-túmulo terreno compartilhados. Agora, já não há mais contato corpóreo, somente a recordação mental nos une. Minto, pois o cheiro dos cabelos, do hálito, do corpo ainda está presente neste quarto úmido. Incoerência, pois você não está mais aqui neste plano em que me martirizo. Memória insana e bem grafada. No dia do traçado que fizemos na madeira, uma promessa divina ou maldita: enquanto as letras ali estiverem, unidos ficaremos perpetuamente. Tolos ingênuos que acreditavam vencer a podridão.
Ninguém resiste ao impacto do chamado, nem mesmo você, nem mesmo eu, nem mesmo Aquele da manjedoura. Corri para a sua antiga casa, mas a nogueira havia sido arrancada, já não havia mais a promessa, todo o sonho se foi com o lenho. Então por que ainda vejo você nos meus olhos e sinto o seu perfume todas as vezes que, em lágrimas, amorteço o meu rosto no travesseiro de nossa cama...
... os olhos se abriram ao olhar para cima, caído ali no assoalho para apanhar o lençol úmido. Intensificada a fragrância quando, no estrado da cama, um raio vívido penetrou na retina: Você e eu. A razão não quis acreditar, então a fé tomou conta do cérebro e compreendeu a presença abstrata da existência do ser amado já morto. A árvore ainda vive, a promessa ainda existe, você ainda me abraça todas as noites e goza comigo nos meus sonhos. Dormíamos todas as noites em cima da nossa velha nogueira. E ainda durmo ao seu lado, até a podridão me cingir e poder, assim, encontrá-la traçando nossas letras, nossas vidas num talo de uma flor...