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Quinta-Feira,18 de Setembro

Enchentes culturais

Jornal O Norte
Publicado em 07/12/2010 às 15:17.Atualizado em 15/11/2021 às 06:46.

Helder Caldeira (*)



Se estamos em dezembro, o ar fica abafado e o céu começa a ser tomado por nuvens escuras, não é preciso ser um Nostradamus para adivinhar as horas seguintes: enchentes assolando as principais cidades brasileiras. Anos após ano, trata-se de uma tragédia anunciada. Seja no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Cuiabá, em Florianópolis, em  São Luís, em Vitória ou em Teresina. Não há discriminação regionalista. É uma mazela incurável do Brasil. Nos últimos tempos, as enchentes, de tão culturais, ganharam até os contornos dos roteiros de sitcom. Se não há remédio, melhor fazer o povo rir com a desgraça. Quando faltam os pães, vamos ao circo.



Entram e saem governantes e ninguém faz nada. E o motivo é simples: obras para conter ou minimizar os estragos das enchentes, em geral, ficam enterradas, nunca estão visíveis e, portanto, se não forem realizadas, de fato, ninguém saberá, ou, quando executadas, não rendem votos no nosso sistema eleitoral doente e carcomido. Isso sem contar que as tragédias provocadas pelas enchentes legitimam uma imensa gama de movimentações fraudulentas do dinheiro público, como dispensas de licitações, compras superfaturadas e toda série de mutretas e malandragens que os Tribunais de Contas dos Estados e da União e o Ministério Público aceitam ser justificadas pelo “caráter emergencial”. Em português claro: as enchentes, que para a maioria são tragédias monumentais, para alguns poucos não passa de uma caixinha de Natal.



O assunto já é tão comum e caiu em tamanho descrédito que, na última semana e motivados pela chegada do verão, foi tema central de dois sitcons de grande sucesso na maior emissora de TV brasileira: “A Grande Família”, na quinta-feita, e “S.O.S. Emergência”, no domingo. Isso sem falar na criatividade dos produtores de efeitos visuais da emissora, que já inventaram um modelo de caractere que se forma a partir da chuva forte caindo num vidro de janela. A inovação foi usada em ambos sitcons e ficou interessante. Na ficção, o Lineu Silva de Marco Nanini, preso em sua casa suburbana pelos alagamentos, perdeu uma cafona noitada especial com sua Dona Nenê num hotel na praia de Copacabana e o Dr. Solano de Ney Latorraca perdeu-se de sua jovem e gostosa mulher em meio ao dilúvio. Mas, na vida real, centenas de pessoas perderam tudo que tinham e os governos encontraram a primeira brecha desse verão para roubar mais alguns milhões de reais dos cofres públicos. É como disse o lunático presidente venezuelano Hugo Chávez, ao culpar o capitalismo pelas trombas d'água que castigam seu país nos últimos dias.



Por ironia do destino e do histórico descaso, enquanto o fictício médico com nome de cantor brega, vivido pelo excelente ator Bruno Garcia, admirava os sedutores “airbags” de sua colega Ellen Roche, presos dentro do carro sob forte chuva e vendo a rua tornar-se um rio e o veículo um aquário, na vida real um dilúvio inundava as ruas do Rio de Janeiro naquele final de domingo. A enchente da ficção é tranquila, água límpida, parece piscina clorada. “À vera”, o negócio é bem outro. Enquanto eu olhava pela janela do meu apartamento no Catete, na Zona Sul carioca, e via a correnteza imunda tomar a rua e os carros e trazer consigo lixo, esgoto, cones de sinalização e até uma porta de madeira, Ney Latorraca encerrava o episódio de “S.O.S. Emergência” no melhor estilo Gene Kelly, de galocha branca nos pés, cantando “Singing in the Rain”, sentando no teto do seu carro alagado. Mergulhou na bela enchente televisiva e seguiu pela rua, apenas com o guarda-chuva à mostra. Enchentes culturais, meus caros. Enchentes culturais!






(*) Escritor, colunista político, palestrante


heldercaldeira@estadao.com.br

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