Renarde Freire Nobre
Professor da UFMG
Numa reportagem do jornal Estado de Minas do dia 04/09, lê-se que “Um pequi sem espinhos e de sabor mais apurado começa a ser desenvolvido a partir desse mês pela Embrapa Cerrados”. A matéria me deixou perplexo e indignado. É serio. Pesquisadores, não façam isso, quer gostem ou não de pequi! É um desrespeito à tradição do “comer pequi”, que envolve a maestria do “saber roer”, hábito que se cultiva desde criança nas terras onde se convive com os pequizeiros, “hábito” que, neste caso, “faz o monge”. É um verdadeiro ritual comensal, no qual a obtenção do sabor requer a capacidade de driblar o perigo dos espinhos. Passar do ponto da boa roedura e infestar a língua e o céu da boca com alguns espinhos pequeninos e impertinentes, isso faz parte da experiência, serve de aprendizado e vira folclore nas rodas dos roedores. Espinhos são retirados com pinça, não com pesquisas. Não sei se querem eliminá-los para tornar o manuseio mais confortável e/ou se a operação faz parte da estratégia de se obter pequis com “um sabor mais apurado”. Acontece que o “desconforto” do pequi, fruto de superfície oleosa e fundo espinhoso, compõe o charme de comê-lo, como também é muito duvidosa a ideia de um “sabor mais apurado”, ao menos para os que apreciam o fruto.
Os cientistas podem agir com vistas a produzir melhoramentos na planta, e nisso são honestos, mas é certo também que toda pesquisa científica implica em fazer das coisas objetos, dominá-las, modificá-las. Há algo de contraditório, irônico, frio e cruel na tarefa da ciência. Todavia, no caso do pequi, é preciso que os cientistas saibam que há coisas “perfeitas” que não precisam ser melhoradas, que há coisas “divinas” que não devem ser tocadas. Que se queira cultivar geneticamente pequizeiros que deem pequis apropriados à produção de biodiesel, não vejo muito problema – embora não saiba o quanto isso é mesmo necessário -, mas é um erro crasso querer alterar as qualidades do pequi que sacia a fome, regozija os sentidos e dá sentido a uma das mais expressivas tradições do cerrado. Bem-vindas são, ainda mais, as pesquisas que visam a aumentar a produtividade dos autênticos pequizeiros, mas desde que não se toque no que constitui a essência da fruta: o seu cheiro, o seu melaço amarelado, o seu sabor e os seus espinhos.
Privar o pequi dos espinhos é tão grave quanto querer retirar-lhe o cheiro. Por mais que haja aqueles que detestem a presença nada modesta dos pequis nas bancas dos vendedores, qualquer esforço de modificá-los ou subtrair-lhes o olor típico significa o sacrifício de um fruto e da sua tradição. Porque olor, oleosidade, sabor e espinhos fazem parte das entranhas do pequi, e o pequi faz parte da alma do povo do cerrado. O ato de comer pequi, para os que o cultivam, faz parte daquelas experiências de vida cujo acontecer se desdobra em prazer e sentido de ser. Tudo começa pelo cheiro, que embriaga o desejo. E comer pequi não é mesmo um ato muito civilizado. Precisa ser praticado com as mãos para, então, chupar os dedos lambuzados. Pequi não combina com garfo e faca, essa dupla civilizadora. Mas isso é o que faz ainda mais marcante. Tudo no pequi é exagerado. Mobiliza os vários sentidos em um acontecer intenso. A relação com o pequi é um caso de amor.
Sei que é um desabafo que pode parecer estranho, mesmo exótico e, pior, totalmente em vão. A ciência é uma paixão estúpida e irrefreável quando olhada pelas lentes da tradição. Mas as lutas humanas não se medem pelo seu sucesso, como é costume se pensar. Toda luta, quando é sincera, vale por si mesma. Isso não tem nada a ver com o lema que diz que “o importante é competir”, porque não se trata de competição, mas de confronto entre paixões que não estão no mesmo campo. E, se não em respeito a tudo que foi dito, preserve-se o pequi por sua raridade: a exótica fruta que guarda em si espinhos. Não faz muito tempo que se empreendeu a luta para proteger os pequizeiros do fogo das carvoeiras; talvez agora seja o caso de se lutar para proteger os seus frutos da frieza da razão científica.