Eduardo Alves
Sociólogo, membro da direção nacional do PSOL
ABRINDO A CONVERSA
O clientelismo ocupa um espaço estratégico na implementação do neoliberalismo no Brasil. O centro da política neoliberal é financista e privatista. As duas principais ações são as privatizações, diretas ou indiretas, para repassar ao setor privado serviços que antes eram operados via propriedade estatal. O que complementa essa política é o repasse do lucro para o capital, principalmente o especulativo.
Com isso o Estado diminui em propriedade com parte dos serviços sendo transferidos totalmente ou parcialmente para o setor privado; diminui em número de servidores públicos de carreira, que passa ocupar um espaço restrito. Os servidores estatais ocupam, principalmente, os setores do Estado Nacional das áreas de coerção, política – parlamento – judiciário e “inteligência” – formulação e regulação. A diminuição dos servidores ocorre principalmente nos setores de serviços. O Estado diminui também o volume de investimento em capacitação dos servidores, o que deixa várias escolas de excelência criadas entre as décadas de 50 e 70 (algumas até nos 80) jogadas às traças ou repassadas para o setor privado. Finalmente, há uma nítida diminuição progressiva, ainda que proporcional, no investimento em políticas públicas permanentes de caráter estrutural.
O que complementa essa política é justamente o repasse direto de verbas para o setor da especulação. Ou seja, incentiva-se o setor privado; investe-se em especulação; cria-se reserva para a compra de títulos. Assim as condições para o crescimento do setor privado e o investimento direto para garantir e ampliar o lucro dos capitalistas passam a ser prioridade central do Estado. Isso porque se abriu uma crise profunda no capital que exigiu a movimentação do Estado para assegurar a manutenção e ampliação da margem do lucro. Esse não é o tema do presente artigo, mas vale dizer que a superação do chamado modelo de Bem Estar Social ou mesmo os modelos similares ao que se chamou de “desenvolvimentismo”, que atingiu parte do terceiro mundo, deu lugar a uma onda capitalista em que o Estado passa ser o garantidor da reserva de lucro. Não se trata mais de criar infra-estrutura para implantação do capital ou mesmo garantias de direitos sociais para estabilidade da cidadania; trata-se de retirar o máximo do investimento em infra-estrutura e de políticas sociais para garantir a manutenção e ampliação da margem de luco. Esse é o significado máximo do chamado ajuste fiscal.
Essa política de Estado colocada acima exige uma reserva de contenção. É onde entra o discurso populista de novo tipo. A política conhecida como social liberalismo é justamente a que opera o clientelismo para segurar a panela de preção que é criada em países subdesenvolvidos que passam pelo chamado neoliberalismo. O clientelismo passa a ser uma das políticas estratégicas desse modelo de Estado. Nesse sentido, pode-se afirmar que o clientelismo passa a ser política de Estado. O Estado investe em um clientelismo que movimenta pequenas economias do interior e dos locais mais pobres permitindo uma circulação mínima de capital e mercadorias que giram em torno da subsistência. Essa é a principal função das tais “bolsas famílias” do Governo Lula, por exemplo.
Cria-se, para que isso possa dar certo, condições institucionais e legais alterando e constituindo a legislação. Foi isso que ocorreu com as várias Emendas Constitucionais que alteraram a Constituição aprovada em 1988 (não vou aprofundar isso, pois é outro assunto). Esse clientelismo, portanto, mantém uma ordem legal determinada. Ele permite que essa ordem se reproduza. As pessoas atingidas por essa política clientelista mudam realmente de vida, conseguem ter acesso ao consumo básico elementar. Esse consumo, ainda que básico e elementar é realmente um diferencial para a vida dessas pessoas. Cria-se assim uma dependência profunda. E essa profunda dependência assegura a reeleição contínua da garantia dessa política. Portanto, pode-se dizer que o clientelismo de Estado é uma das formas de despolitizar a política e comprar o voto das pessoas se aproveitando das próprias condições precárias pelas quais passam essas mesmas pessoas.
O clientelismo de Estado é legalizado, feito dentro das margens da lei e precisa, para ser perpetuado, que seja um pilar de manutenção da ordem e passa ser antítese das chamadas reformas estruturais. As reformas estruturais seriam um golpe de morte nesse modelo, pois, elevariam as condições para níveis em que tais políticas não teriam resultado. Justamente por essa razão o clientelismo de Estado só pode se desenvolver e ser aplicado em países que não passaram por reformas estruturais profundas; pode-se dizer que só pode se manter em países que não fizeram a tal “transformação ou revolução republicana”. Isso não quer dizer, automaticamente, que o Brasil possa passar por essa política ou que ela deva anteceder um projeto socialista. Pode-se disputar um projeto socialista que opere as reformas estruturais e vá além construindo rupturas e bases para uma nova ordem. Mas isso é outro debate.
O PAPO RETO
Continuando no tema do texto, deve-se entender que não há diferença política entre o clientelismo de Estado e outros tipos de clientelismos. As diferenças são legais e morais. Algumas morais assimilam o clientelismo de Estado e não o clientelismo ilegal. Outras morais assimilam o clientelismo consentido, mas rechaçam o clientelismo feito por meio da coerção. Mas do ponto de vista político não há diferença entre esses modelos de clientelismo.
Há políticas clientelistas ilegais que tangenciam o Estado e políticas privadas, dentro da legalidade, que tangenciam a ilegalidade. A política clientelista organizada por grupos coercitivos que fazem extermínio, que dominam o varejo do tráfico (nas favelas, morros ou comunidades) ou das milícias são ilegais. É essa política que impõe as condições para que as pessoas tenham acesso a serviços por preços menores que o “mercado” e até que o “Estado” (quando regulador) oferecem. Há políticas clientelistas privadas que se organizam em torno dos tais Centros Sociais que são ligados direta ou indiretamente a detentores de cargos políticos. A legislação eleitoral não permite a troca de favores ou a compra de votos, mas tais centros fazem isso, tangenciando a ilegalidade, ainda que se mantenham com “estatutos legais” como instituições privadas filantrópicas.
Todas essas políticas clientelistas possuem como objetivo manter o controle sobre um determinado setor da sociedade; justamente o setor mais penalizado pelo empobrecimento, mais sacrificado pela prática da exploração, mais discriminado por sua condição social. É esse setor que está mais suscetível às políticas clientelistas. E como tais políticas fazem diferença concreta, real, objetiva para a reprodução da vida dessas pessoas, que são maioria na sociedade brasileira, as conseqüências dessa política nos processos eleitorais são decisivas. O risco de viver retrocessos em pequenas melhorias, mas que significam muito tendo em vista as situações precárias que vivem milhões de pessoas.
O principal responsável pelas políticas clientelistas é o Estado. É responsável quando incorpora o clientelismo como uma política do próprio Estado. É responsável quando setores ou instituições do Estado participam ativa ou passivamente de políticas clientelistas ilegais ou privadas. É responsável quando não fiscaliza as diversas ilegalidades que ocorrem como subproduto da relação entre detentores de cargos públicos e os vários centros sociais espalhados pelo país. É responsável quando se omite na qualificação do Estado e decidem, deliberadamente, pela não implementação de políticas que gerem alterações estruturais na sociedade.
Assim sendo, as condições de vida das pessoas se colocam determinante as diferenças políticas. E não se pode esquecer que ainda há o elemento coercitivo para, no limite, forçar a aceitação e a participação de parte significativa da população em relação a tais políticas. Pode-se, portanto, afirmar que as políticas clientelistas são centrais para a despolitização da política e para a eleição dos setores conservadores e de direita. As políticas clientelistas são centrais para a manutenção e reprodução da ordem política, social e econômica. Não há avanço no processo de democratização sem o enfrentamento das várias formas de clientelismos que hegemonizam as práticas neoliberais em aplicação no Brasil.
Essa foi uma das marcas das eleições de 2008: o clientelismo saiu vencedor. O PMDB e o PT, principais partidos da base de sustentação da base do Governo Federal, são os principais expoentes das políticas clientelistas de Estado. Os eleitos, em sua maioria, são os donos dos centros sociais ou políticos envolvidos em negociatas clientelistas. As exceções existem, mas estão cada vez mais exprimidas por essa realidade social totalitária que abafa cada vez mais a diversidade de projetos e idéias. Daí a vitória da despolitização da própria política.