Eduardo Lima
Nasci na Cônego Chaves. Em casa, mesmo. Vilela e Eunice moravam em frente e Vilela bordava ouro. Na esquina, um bar melancólico transpirava os dias. Logo abaixo se vendiam cocadas pretas e brancas e o arauto do quebra queixos anunciava sua delícia pelas ruas de tardança e pó. Montes Claros era província, uma cidade entregue ao vento e aos devaneios. Sinval Froes e Ducho faziam a trilha. Pura singeleza.
Tuia se agarrava a uma chupeta vermelha e bicuda, ele e sua imagem de dar dó, depois concebida sem pecado pelo gênio de Grande Otelo, em Macunaíma. Tuia morava num alpendre decorado com ladrilho hidráulico, no que era então o jornal de Dr. Osvaldo, O Jornal de Montes Claros, na Dr. Santos, 104, hoje Caixa Econômica Federal.
Montes Claros dormia até mais tarde. Montes Claros usava uma camisola transparente e insinuante, na qual se deixava quase ver em casta nudez. Era nossa a cidade, nós a sabíamos, tocávamos sua intimidade. Dr. Hermes, Luiz de Paula, Godofredo, os Amorim, Piloto, Cândido Canela, Dr. Orestes, Ramos, Dona Marina e Seu Quinzinho, Tião do Banco, Suzart, Dr. Alfeu, Toninho Rebello, Zé Machado, Dr. Mário, Geraldo Machado, Coronel Georgino, Jaci, Dona Marina, Dona Zezé, Dona Ivone, Maria Celestino - a fidúcia se misturava aos singelos numa estética traduzida, quiçá, na batina surrada de Padre Henrique, que guiava sua bicicleta sobre um fio de esperança e na trilha dos iguais.
Não havia castas senão a dos dotados, os gênios, os ricos de virtude ou loucos. Só uma coisa nos separava de nós: a linha do trem de ferro. A cidade da seda, do cetim, do linho, ficava abaixo. Acima, a cidade de chita e gorgurão. Soube-se, depois, que meninos e meninas lá de cima desciam para deleitar-se com meninos e meninas do outro hemisfério. E que assim, tão naturais, os meninos e as meninas do baixio venciam a linha para ofegar no vão escuro das ruas pobres, nos muros, nos lotes vagos.
A cidade venceu a linha e todos vagamos mesmos devaneios, as mesmas angústias da metrópole, o mesmo som de Umaguma ou Crosby, Still, Nash e Young. Conheci e bebi saber com Georgino Júnior, Reginauro, Tino Gomes, Djalmir, Rubinger, Aroldo Pereira, Tico Lopes, Melanca, Mário Boy, Tião, Patão, Zé Arlen e Durvalzinho e Darlan Rego e Gera Maciel e Rita e Clarice e Laura e Mirinha e Nina e uma gente tão linda, tão cheia de luz, tão de outro mundo, tão rica de felicidade que fomos atados num só cacho de coisas. A cidade cresceu, eu fui embora, meus amigos ficaram em meio à coragem e aos velhos sonhos, para esperar a hora do lumiar, que enfim chegou. Estão todos taludos e, hora, lúcidos, responsáveis, sabidos da vida.
Assim é que peço licença, nas crônicas que passo a escrever no O Norte, para desfilar meu olhar vazio de pés de manga, meu olhar de cimento e solidão, meu olhar de coisas idas, meu olhar de mais saudade do que lucidez e presente. Olhar de um senhor escravizado pelos escândalos intestinos, as lutas d´alma, a agonia de não ser o que se quer e a alegria sobre par de ter escrito, com as mesmas letras com que se escreve abismo, lírica versão de voar.
Hoje uso óculos, tenho muitos filhos e quando me entristeço, olho o horizonte que resta, recortado por edifícios e demais silhuetas de medo. Nas frestas vejo lua. E torno menino, vestido sobranceiro na mais linda fantasia.
N.R.: a partir de agora, Eduardo Lima escreverá às terças e sábados em O Norte de Minas