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Segunda-Feira,27 de Outubro

Dia da criança - por Flávio Lauria

Jornal O Norte
Publicado em 11/10/2008 às 15:53.Atualizado em 15/11/2021 às 07:46.

Flávio Lauria



A cena descrita a seguir é comum em todo o Brasil. Sinal que não abre dura uma eternidade. Descalço, roupa surrada, calção claro, camisa verde aberta ao peito. E a informação adicional, sempre disponível num plantão policial: “idade aproximada de seis anos”. Mãos apoiadas e nariz colado ao vidro do carro. Não pede, não fala, não limpa. Não tem nem tamanho! Apenas olha. Olhar sereno, penetrante, incisivo. Para ele, aquela é apenas outra negativa de uma moeda que sequer foi pedida. Traz consigo a ciência do tempo que mantém fechados os sinais. Estudioso de semblantes, simplesmente contempla a impaciência no motorista.



A serenidade daquele olhar trai a segurança do motorista que, de dentro do seu automóvel, observa, passivo, a fragilidade exposta. Indignação racionalizada, até que uma inquietação faz-lhe lembrar a moeda de real disponível em um dos bolsos. É preciso agir rápido, afinal (?) o sinal vai abrir. Baixa o vidro e, gesto contínuo, entrega o que seria um tributo àquele olhar. Sorri sem graça, acreditando estar livre de mais um garoto inconveniente, desocupado ou capaz de uma agressão qualquer. Pronto: está dado o presente das crianças pobres.



No dia da criança que um dia será adulto, o feitiço vira contra o feiticeiro. O garoto toma aquela moeda em suas mãos, contempla-a detidamente, enquanto se processa uma metamorfose em seu rosto. A transcendência no esboço de um sorriso, capaz de triturar o gelo de alguns corações que, por acaso, contemplam cena tão pungente. Diante de tamanha carência, aquela moeda simbolizava “o pão descido do céu”. Enquanto isso o semáforo, ainda fechado, precipitava sua abertura. Surpreendentemente, grita o menino: “obrigado, moço, obrigado” e corre para a calçada. Festa na sarjeta. Numa dança que lembra um ritual de felicidade, dá pulos de alegria. Corre ao encontro de um irmão que aguarda, confuso em seu canto, o objeto da partilha. Alegria incontida, agradecimento incompleto. Insatisfeito, corre de volta até o carro e, peremptório, determina: baixe o vidro, moço, baixe o vidro. Como não atender a uma ordem que procede do coração! Num inocente aperto de mão, diz: mais uma vez, obrigado moço! Fato passado e sempre presente. Apenas um real. Mas, para ele e por ele, abençoado, na certeza do “pão nosso” daquele dia.



Abre-se o sinal, mas os carros não buzinam. Ou, se buzinam, agradecem em coro o presente de um garoto, para o despertar da consciência moral dos adultos: um sorriso! Um sorriso que acende uma luz em nossos corações, sinal verde para a esperança. Manifestação alegre, espontânea e contagiante de uma criança, cuja inocência simplesmente reclama mais justiça e respeito à sua dignidade. E que exige de nós uma sensibilidade conseqüente, a fim de que possamos refazer, na prática, o caminho traçado por Gadotti, em sua Dialética do Amor Paterno: do amor pelos meus filhos ao amor por todas as crianças. E concluir com um certo Alain, quando dizia: “A justiça existirá se a fizermos. Eis o problema humano.”

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