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Sexta-Feira,27 de Dezembro

De estilingues e lagartixas

Jornal O Norte
Publicado em 29/06/2010 às 08:32.Atualizado em 15/11/2021 às 06:31.

Alberto Sena


Jornalista



Quando papai morreu, lembro-me bem, tinha eu 12 anos. Nós morávamos na Rua Corrêa Machado, 238, em Montes Claros. Menino ainda, calças curtas, jogava bolinha de gude com Ari, um amigo da rua de trás. Lúcia, minha irmã, me procurava, e quando me encontrou, disse:



- Corre pra casa, papai não está bem.



Embora menino, captei logo a mensagem dela. Corri o mais que pude. Cheguei a tempo de ver papai dar os últimos suspiros. Ouvi os dedos dos pés dele estalarem e alguém dizendo:



- Os estalos dos dedos foram sinais da partida dele.



Talvez para me tirar do quarto, mãe me pediu para correr à casa de tia Ambrosina, irmã dela, a fim de dar a notícia da morte de papai. Peguei a bicicleta Monark e, em rápidas pedaladas, fui à casa de tia Ambrosina. Avisei-a e voltei voando.



O velório do meu pai foi na sala de visitas de casa. Ele e mãe estão enterrados na mesma sepultura, no Cemitério do Bonfim, de Montes Claros.



Uma foto publicada por Augusto Vieira, numa das suas crônicas mais recentes, sobre a inauguração do Banco Econômico, na qual ‘Tiãozinho do Banco’, pai de Tininho, um dos escribas do livro “Éramos felizes e sabíamos”, fazia discurso ao lado de autoridades da cidade, me levou a lembrar de pai. Ele não está na foto, mas o coronel Coelho, à época o delegado de polícia de Montes Claros, está.



E o que tem o coronel Coelho a ver comigo e com pai? O leitor atento há de perguntar. Tem a ver pelo seguinte: o coronel Coelho era delegado do tempo dos delegados “calças-curtas”. Ele era amigo de pai.



Um dia, pai me levou à presença do coronel Coelho, sob intimação policial. Um PM havia ido me procurar lá em casa para me intimar. Como na época eu tinha só 11 anos, tive de ir à delegacia com meu pai. Chegando lá, com o coração na mão, vi pai e o coronel Coelho se cumprimentarem. E ele, o delegado, perguntou:



- O que você está fazendo aqui?



Ao que pai respondeu:



- Vim trazer o meu filho, ele foi intimado.



O coronel Coelho ficou uma fera. Disse:



- Como intimaram uma criança para vir à delegacia?!



Bom, fui intimado porque, dias antes, armado de estilingue, juntamente com outros amigos de semelhante idade, eu atirava pedras em lagartixas, na Rua João Pinheiro, próximo de casa. Em certo momento passava um caminhão caçamba, do Departamento de Estradas de Rodagens (DER), e me lembro de ter ouvido um barulho igual ao ruído de vidro se quebrando.



Um dos amigos, sem querer querendo, dera uma pedrada no para-brisa do caminhão e no mesmo instante o vidro se partiu em pedacinhos. O motorista parou o caminhão e perguntou quem tinha jogado a pedra. Sabe quem se apresentou? Ninguém.



Como não fora eu o autor da peripécia, afastei-me do local com medo de que sobrasse alguma coisa para mim. Desci a rua e continuei, juntamente com outros amigos, a caçar lagartixas, quando ouvi os gritos de Lúcia:



- Corre pra casa porque um soldado foi lá procurar por você e papai está uma fera.



Fiquei apavorado. No que entrei em casa senti a mão pesada de pai nos fundilhos. Foi a única vez que levei um tapa dele. Apanhar de minha mãe era comum, um dia sim e no outro também, mas de pai, foi a primeira vez.



Como estava inocente no caso, fiquei com a minha consciência tranquila, mas tinha de ir à delegacia com meu pai. Quase morri de medo de ficar preso. Quando ouvi o coronel Coelho dizer “delegacia de polícia não é para menor de idade”, fiquei aliviado. E mais ainda fiquei quando ele se despediu de mim e saiu do gabinete conversando animadamente com meu pai.



O episódio deu-me o que pensar. E tanto pensei que cheguei à seguinte conclusão: o autor da pedrada não foi “Dedinho” como alguns meninos apontaram. Ninguém me tira da cabeça: o autor da pedrada, voluntária ou involuntariamente, fora Sílvio Guimarães, que, se não me engano, hoje é médico em Montes Claros.



Estou certo disto, sabem por quê? Assim que o para-brisa do caminhão estourou, vi Sílvio sair de fininho e jogar o estilingue dele no mato.



Em seguida, ele ficou com a cara de santinho, santinho de pau-oco, enquanto o motorista dizia cobras e lagartixas querendo um culpado de qualquer jeito.

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