Manoel Hygino
Dalí chegou e permanece até 17 de agosto. Ainda há tempo suficiente para ir-se à Academia Mineira de Letras, na celebrada rua da Bahia, próximo à igreja de Lourdes, e conhecer as cem gravuras que o excêntrico, mas competente, pintor espanhol produziu sobre a “Divina Comédia”, de Dante. Não se paga para apreciar essa magnífica obra do mestre, cujos 110 anos de nascimento, em Figueras, se comemora este ano.
Em Dalí, tem-se um encontro com a Espanha, em toda sua grandeza e vicissitudes. Como define Neruda, o país ibérico é seco e pedregoso, castigado pelo sol vertical que arranca chispas da planura, construindo castelos de luz com a poeirada. O Nobel chileno afirmava que os únicos verdadeiros rios da Espanha são os seus poetas, com suas águas verdes e profundas, de espuma verde. Discordo. Os pintores são também rios que cortam pedaços da península, como fizeram árabes e romanos.
Salvador Dalí Fomenech Felip Jacint Domènec visita a capital mineira, em um privilégio que só faz bem, atraindo-nos para o esplendor da pintura espanhola, com o acréscimo de trazer consigo a magia da obra-prima de Dante, que – nascido sob o signo de Gêmeos – morreu prosaicamente, em Ravena (não a próxima de Sabará), em 1321, com 56 anos, vitimado pela malária, como até hoje acontece na África e no Brasil.
Mas o pintor chegou aos 85 anos – tornando-se, por seu jeito de ser e viver, até personagem folclórico no mundo artístico, cultural e intelectual, no século que passou.
Contrariamente ao que geralmente se julga, a “Divina Comédia” foi escrita em toscano, dialeto que serviu de gênese ao italiano de hoje, sendo vertida ao português por brilhantes tradutores.
Coisas de gênios: Dalí, espanhol, descreve em cores a visão que o italiano Dante tivera da situação das almas depois da morte.
São três regiões ultraterrenas: Inferno, Purgatório e Paraíso, compostas em 33 cantos, compreendendo, junto com a introdução, cem cantos em tercetos, forma criada pelo Alighieri.
Falando-se do poeta, lembra-se frequentemente seu amor pela menina Beatriz. Sua obra, destarte, quer tornar virtuosos os que vivem o presente para depois os conduzir à eterna bem-aventurança. O autor se convenceu de que a forma didática não dava resultados positivos. Assim, inspirou-se em outros poetas religiosos e populares que tinham florescido no Norte da Itália.
Descreveu, de forma crua e realista (que deu vigor à concepção pictórica), as penas do Inferno. Supõe o poeta encontrar-se, no meio do caminho da vida, em uma selva escura, sem saber como ali chegou. Por veredas, alcança o sopé de uma colina, em cujo cume se divisam os primeiros raios de luz da aurora. Ao retroceder, encontra o poeta Virgílio, que o adverte de que não poderá escapar por linha reta e se oferece para acompanhá-lo. Assim, percorreriam juntos as regiões da eternidade e empreenderiam a viagem de salvação.
Dante ainda vacila, mas Virgílio lhe declara que fora enviado por Beatriz, o único e eterno amor do poeta e ela será o prêmio maior ao final da jornada. Atravessam, ambos, o caminho adverso do Inferno e Purgatório, para, enfim, alcançar o Paraíso, já ao lado da amada.