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Quarta-Feira,5 de Novembro

Corte de cabelo

Jornal O Norte
Publicado em 11/03/2009 às 09:25.Atualizado em 15/11/2021 às 06:52.

Márcio Adriano Moraes


Professor de Literatura e Português


marcioadrianomoraes@yahoo.com.br


 


Não teve jeito. Ao olhar para a prima, que havia chegado de uma terra distante, onde o povo fala sô, sa, sê, si, su, emergiu a idéia. Cortar os cabelos é uma necessidade, é algo normal, pelo menos, para os seres humanos que os possuem. É, pois aquelas pessoas que não possuem vegetação no “encéfalo”, usualmente, não cortam cabelo.



Foi-se o tempo dos Black Power, daqueles penteados em forma de cones, Ravengar, Moicano. A moda, hoje, é um tal de degradê, chapinha (ou como diz a vó de um amigo meu: “é, meu fi, dispois que inventarum esse negóciu de ferrim, nenhuma mué tem cabelu ruim mais”), alisamento, escova, et cetera.



Então, foi assim, não como ver o mar, como sugere Flávio Venturini, mas como ver um novo visual, um novo sorriso no espelho. A lua era crescente. Dizem os “especialistas” que é uma época boa para lascar a tesoura no couro cabeludo. Mas não havia superstição. Esse negócio de contar as estrelas para dar verrugas nunca funcionou comigo. Fiquei foi tonto de tanto olhar para aqueles vaga-lumes no céu.



Depois de algumas goladas de água mineral Ingá (havia comprado um filtro novo, desses que gelam a água) e depois de olhar fitamente os cabelos já surrados de Garnnier Frutics da prima, decidiu seqüestrar a cabeleireira que tomava, tranqüilamente, o seu chope da Kaise. Na garagem da casa, transformada em salão de festas, altos papos, Almir Sater, Toquinho, Chico Buarque, uma música barulhenta que eu não sei o nome. Lá fora, umas pessoas pintando com os lábios, usando a cara como tela e o batom como tinta, uma troca ofegante de fluídos labiais. Dentro, outros querendo estar na pele dessas pessoas, pois a seca castigava, mas o pouco que eu plantava tinha direito a comer (sai fora Zé Ramalho, o seu momento durou pouco na festa). Ah, tinha um cara estranho, reclamando do calor. Dizia ele que deveria ter nascido no Pólo Norte, pois detestava o sol, detestava a claridade. Quando ia a praia, ficava na sombra. Tem coisas que a gente não entende, e, quando Frued explica, aí que complica mais ainda.



Um clima propício para uma sessão de beleza. Eram passadas três horas depois das Ave-Marias (não, delirei, Egberto Gismonti não fazia parte do repertório). O quarto seria o salão. Com um instrumento de corte formado por duas lâminas, reunidas por um eixo, que se movem abrindo em cruz, a cabeleireira trabalhava atentamente. A freguesa improvisada sentia o êxtase do novo visual que, aos poucos, ia surgindo diante do espelho. Os cabelos que caiam pareciam pedir para despencar, pois vislumbravam a beleza que estava acontecendo. E não se sentiram tristes, porque o resultado foi fenomenal. A mulher, que faz cabeleiras, dizia uma coisa estranha, algo como: vai ficar igual a Cicarelli, sei lá o nome da mulher que ela dizia, só lembrei de seis dedos no pé, coisa de louco.



A única coisa que eu sei é que, quando o ar parou de soprar, lobriguei, diante de mim, uma claridade tão linda, tão intensa, que meus olhos ficaram mais claros e límpidos. A sessão de beleza tinha terminado. A garota, cujo cabelo passava rente à coluna vertebral, agora estava com um ar moderno. A cabeleireira trabalhou bem e com afinco. Fiquei sabendo, dias depois, que ela tirara alguns fregueses do Studio de Beleza Chez Marie.



A ninfa levantou-se da cadeira de seu toucador e apresentou-se ao público com os seus novos cabelos. Apesar de serem os mesmos, pois não foi usada nenhuma técnica de implante ou aplique, as mulheres sempre dizem: “estou com cabelo novo”. A satisfação da morena foi tremenda. Sentiu-se leve. Lembrou-se da prima e perguntou a cabeleireira o que ela achava de pintar os cabelos. A profissional sugeriu a cor marrom. De certo, para confrontar com os traços loiros da prima. Antes das duas horas da matina, a mulher que havia entrado no quarto estava transformada por fora e por dentro. Descobri, então, nesse momento que, para ficar mais belo, mais feliz, não tem tempo e nem tem hora, quando se decide mudar, só se for agora.



ERRATA - No nosso último texto (10/03/09) dedicado ao padre Murta, onde se lê: “Que possamos, então, ousar pisar nos ‘ratos’ santos que nesta vida terrena deixaste”; leia-se “Que possamos, então, ousar pisar nos ‘rastros’ santos que nesta vida terrena deixaste”.

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