Mara Narciso
Médica e acadêmica de Jornalismo da Funorte
Os meus trinta anos, o meu casamento, e o meu emprego davam-me a permissão para ter um filho. Veio filha. Nasceu imperfeita, com o rosto disforme, orelhas baixas, mãos e pés mal formados, pernas tortas, problemas cardíacos, branquinha, tão frágil na sua falta de ar, que me comovi quando a enxerguei pela primeira vez. Não pude dar-lhe o peito, e nem segurá-la devido aos tubos de oxigênio. Era minha, mas realmente nunca me pertenceu. A visita era diária. Olhava o corpinho largado no berço, sem um aconchego, um carinho, um calor de mãe, apenas a minha mão dentro da estufa tentando segurar na mão dela. Amei tanto essa menina, e ainda tirei uma foto na última visita em que a encontrei viva, pois a minha criança partiu.
Chorei muito por tê-la perdido, mesmo sabendo que, com tantas deformidades a sobrevivência seria impossível. Agarrei-me à fotografia, olhava-a de instante em instante, fiquei obcecada, chorava sem parar, descontrolei-me e tão desvairada estava, que não consegui mais trabalhar. O meu chefe direto foi particularmente duro comigo, e mandou-me rasgar o retrato da minha filha deformada, e ainda me chamou de louca.
Temia por uma nova gravidez, mas, ao mesmo tempo desejava demais ter outro filho. Apareceu um problema de tireóide devido ao meu descontrole emocional. Andei por muitos consultórios médicos e passei a tomar remédios faixa preta. Odiava ver barrigas e carrinhos, e este sentimento era maior do que eu. A minha vontade era engravidar e o meu pavor era exatamente este: ver-me grávida novamente. Os remédios controlados usados por mim eram um impedimento para a gravidez, mas mesmo assim engravidei.
Com uma pessoa formando-se dentro de mim, o meu estado mental deteriorou-se de tal forma, que tive de me afastar do trabalho novamente. Mas o meu chefe ainda gritou na saída: “o seu filho será ainda mais ‘aleijado’ que o primeiro”. Com aquela ideia fixa, eu não comia, não dormia, e só chorava, mesmo com os remédios do psiquiatra. À medida que o meu ventre se avolumava, ampliava-se o meu pavor na mesma intensidade. Sentia que criava um monstro que me comia as entranhas, me perfurava a alma, me destruía. Toda semana tinha médico. Na ginecologista eu detestava todas as grávidas e as suas insuportáveis barrigas. Tinha vontade de esganar aquelas mulheres faladeiras que comentavam sobre compra dos enxovais - roupinhas, bicos, mamadeiras e brinquedos. Fervendo de raiva, eu deixava a sala de espera e ficava lá na rua remoendo a minha aversão pela maternidade até o assunto passar. Mas o sentimento piorava, pois o mundo está cheio de grávidas e crianças, e logo eu via uma mãe empurrando um carrinho de bebê.
A minha barriga crescia, e eu, na minha loucura enxergava uma criança formando-se e deformando-se grotescamente. O rosto e os membros eram as partes mais defeituosas. As aberrações giravam na minha cabeça e na minha frente numa dança de imagens saídas de um filme de terror. O sofrimento desses dias emendando-se em meses impedia-me de ser útil ou fazer qualquer coisa. Passava as noites, todas elas, sentada na cama chorando. Cochilava um pouco pela manhã. Numa das consultas soube que tinha no meu sangue dois tipos de vírus que poderiam causar doenças e defeitos na criança. Esse diagnóstico acabou de me enlouquecer.
Os médicos eram solidários, e diziam o que sempre se diz nessa hora. Sabia também, que os remédios do psiquiatra ajudavam a acalmar-me, mas poderiam agravar os meus problemas de gerar filhos defeituosos. Sem esses medicamentos minha loucura explodiria, e eu poderia até tirar a roupa e sair correndo pelas ruas afora jogando pedras nas pessoas. Pelo menos os remédios me seguravam. As imagens de ultrassom não mostraram deformações. O meu marido nunca me falou que tinha o mesmo medo que eu. Dizia acreditar que tudo acabaria bem. A minha mãe foi morar conosco durante os nove meses de espera, e mesmo junto dela, não me atrevi a comprar nem uma fralda. Também não conseguia me olhar no espelho.
Na barriga dos outros, os nove meses são apenas nove meses, mas na minha barriga, eternidade foi pouco para vencer essas 40 semanas. A angústia da contagem progressiva, semana a semana, era em câmera lenta, enquanto a minha palpitação e tremores corporais eram aceleradíssimos. Até a minha língua tremia pelas semanas intermináveis. A tortura mental, mesmo sob tratamento era como enfiar agulhas pelo corpo, e na altura das unhas, escarificar com bastante força e as deixar lá. Isso no tempo todo dessas tantas semanas.
Ao se aproximar o final da jornada, a vontade é que não terminasse nunca, mesmo que as forças há muito estivessem esgotadas. Tinha pressa, e um medo descomunal e paralisante. Nada que me dissessem me acalmaria, pelo contrário, me atormentavam ainda mais. O maior monstro que o cinema já produziu era um nada diante do que a minha mente fora capaz de criar.
Chegou o dia da cesariana. Deitada na maca, venci os corredores do hospital e na sala cirúrgica, pedi para não dormir. Era um filho o que eu esperava nessa tormenta assustadora, e foi um filho que me entregaram. Nasceu chorando forte, limparam a cara dele e o trouxeram. Cega no choro meu e no dele olhei o rosto, o corpo, os braços e as pernas. Contei os dez dedinhos. Meu filho é perfeito! Preciso comprar uma roupa para vesti-lo!
