Georgino Neto
Filho primogênito
Tenho tido a sorte, como leitor contumaz que sou, de ler em primeiríssima mão as crônicas semanais de Georgino Júnior. Natural, obviamente, já que sou o filho primogênito deste escriba das terras de Figueira. Para além desta constatação imediata, façamos justiça. É um enorme privilégio ter a possibilidade de conviver tão proximamente com a genialidade tosca e arredia do meu pai.
Costuma ele nos dizer que não gosta muito de escrever, que o seu tesão e o seu prazer se afloram mesmo é no desenho, na pintura. Tenho até receio do que aconteceria então se ele escrevesse com alegria. No fundo, tenho para mim que o que ele faz mesmo, ainda que não saiba disto, é desenhar com as palavras. As letras são para ele o barro e a matéria-prima de um traço cada vez mais belo e humano.
Rotineiramente me faz de seu crítico literário, retirando o texto ainda quente da fornalha-impressora, como o padeiro orgulhoso da sua produção (no fundo creio que ele se aproveita da sua pouca intimidade com aparelhos eletrônicos para sempre me pedir que imprima as crônicas, com o furtivo intuito de me solicitar uma opinião descompromissada). E eu me alimento até fartar, como degustador voraz.
Na verdade, não tenho muita capacidade de análise crítica e sistemática de um texto. Ainda assim, procuro manter o necessário afastamento que a nossa condição genealógica nos impõe, para ser o mais imparcial e sincero possível. A questão é que simplesmente não consigo não me apaixonar pelos seus textos. Na minha parca compreensão literária, tenho para mim que não fica nada a dever a um Rubem Braga. Não fosse a sua teimosia (cultivada, aliás, como parte de uma interessante estratégia de construção de uma personagem), estaria ele entre os grandes escritores lidos do nosso país.
Nesta semana repetiu-se o ritual literário-familiar. Dando as caras pela sua casa, lá me vejo eu, impelido por ele, a realizar as minhas impressões. Desta vez, porém, não o fiz de forma imediata (para desespero da sua ansiedade disfarçada); fiz uma cópia para mim, com o compromisso de ler na minha casa e fazer os comentários a posteriori, devido a alguma pressa idiota que a vida nos obriga a ter. E assim foi feito. E tudo se repetiu: o orgulho de tê-lo como pai; a felicidade de lê-lo como escritor; a incontida alegria de uma óbvia constatação da sua genialidade.
No entanto, me deu uma vontade danada de escrever um comentário, e não de simplesmente dizê-lo. E cá estamos, inaugurando um bate-papo textual.
Não tenho a pretensão de ser infimamente genial quanto ele. Mas a sua crônica me despertou para uma idéia. Idéia esta que venho solitariamente desenvolvendo ao longo de alguns anos. É bem verdade que não possui nenhum critério de cientificidade, nem tampouco é baseada em algum método rigoroso e sistemático, além da minha observação sonsa do cotidiano. Pois bem; a minha idéia é que o mundo está dividido em duas metades exatamente iguais: metade da humanidade é boa, e a outra igual metade não presta.
Ao ler sua crônica, constatei que a sua melancolia (outro instrumento eficaz da sua personagem), advinda provavelmente desta estranha sensação que somos tomados todo final de ano, está ainda mais aflorada. O seu aparente pessimismo está no seu texto devidamente justificado. O meu contraponto é que você/ele se vale da metade podre. Se neste instante Israel massacra palestinos com o aval bélico e amoral dos Estados Unidos, é possível encontrarmos pessoas que bradam contra, e que são capazes de dar a própria vida para evitar que isto aconteça (mesmo sabendo que isto não seja de fato possível). E que esse mesmo país, Estados Unidos, elegeu um negro como dirigente máximo.
Se também é verdade que milhões passam fome na África, não é menos verdadeiro o fato de que milhares de toneladas de alimentos são enviadas para lá por voluntários que entendem que o pão deva ser mais bem repartido, como nos ensinou alguém, aliás, há cerca de dois mil e nove anos. Se existe a corrupção, existe a ética. Se a mediocridade for um fato, o belo nos conforta. Se a seca no Nordeste ainda alimenta a ganância política neste país, ela produz espetáculos de indignação social. Se na nossa cidade ocorreu quase uma centena de homicídios por causa das drogas e do seu tráfico, tenho certeza de que milhares de belos e nobres gestos são diariamente estampados na nossa cara, não pelos jornais, certamente.
O que quero propor, meu pai, é que há sim motivos para nos entristecermos. Mas há para alegrarmo-nos imensamente. Se for para sofrer, que seja como o Poetinha nos ensinou, que seja por dores de amor.
Neste final de ano, meu pai, mais do que nunca, quero acreditar na metade boa do mundo. Quero ardentemente crer na capacidade humana de construir histórias de beleza e esperança. Esperança na espécie humana, ainda que seja a única que mata sem o propósito de defesa. Matamos à toa, é verdade. Mas amamos mais à toa ainda.
Neste final de ano, enfim, quero que as suas crônicas sejam cada vez mais lidas. Pois é pelo encantamento das suas palavras que metade do mundo se emociona. E será pelo encantamento das suas palavras que a outra metade se renderá à bondade do coração humano. Que assim seja.
Feliz Ano-Novo, meu amado Pai/Escritor.
